domingo, 24 de outubro de 2010

Pepe e Luena - um encontro no deserto


Hughie Lee-Smith 1987



- Pepe, há dois anos que não te visito. Vejo-te dentro deste teu mundo, rodeado de muito pouco e de mim nada sabes. Deixei crescer a barba. As calças de ganga são muito justas, apertam-me e causam o incómodo calor. Tenho sede. Gosto da tua camisa garrida, podia descrever-te as cores como figuras que se movimentam na névoa quente por entre pós minúsculos, sobrevoando. No entanto, só me lembra o forte cheiro do mar, uma maresia de lapas, mexilhões e limos verdes. Estando tu aqui no meio do deserto, neste horizonte de nadas, como me sentes, quem sou eu para ti?
- Amigo, como te enganas. Vejo-te bem. Não és o mesmo. A voz cansada. Vejo-te nos intervalos da aragem que te desenha, que me traz sussurros de alma, os contornos do corpo. Distingo o aroma lavanda que te envolve, o escorrer lento de gotas que se esgotam do alto da testa às fissuras da trama do tecido, vaporizando de novo, separando sais! Sinto-me e sentes-me. A energia que transmites é a dádiva natural do Sol durante o dia, das estrelas ao chegar a noite.
- Pepe, tu afinal vês para além da luz! Sinto-te calmo, seguro. Essas tuas botas altas, couro gasto, não serão pesadas, desconfortáveis? Esta casa também ela, como há muito tempo não via, de tábuas pregadas em inclinações de acasos, assimétricas, neste lugar tão isolado, longe de tudo, não será imprópria, despropositada?
- Amigo. é apenas um ponto, uma pequena parcela isolada do universo, a minha gota do grande oceano que ao contrário do teu está por cima. Seremos sempre irmãos porque esse mundo que vês como teu e esse mundo que é o meu, ambos se formaram do mesmo nada, a intriga permanente de dualidades, corpo e espírito, energia e massa. Neste momento, do mesmo modo, habitamos o mesmo céu.

Encontrava-me de costas, mas pude perceber Luena, em passos lentos aproximava-se. Sabia da sua existência, sabia que estava para breve a sua união, admirava-lhe a coragem, com um cego no deserto. Pressenti o esvoaçar leve do vestido que agora ao virar afagava a pele morena acima do joelho, na lentidão contínua dos passos.
O baton era excessivo, na miragem ardente surgiam as curvas de um cartaz de Moulin Rouge, muito longe dali.
Os lábios permaneciam fechados embora dentro de mim, um ruído de vozes de outras mulheres, de outras histórias, uma viagem de sonho, avivando em surpresa memórias esquecidas.
Quando a nós chegou, abriu o sorriso luminoso, estendeu a cada um o fruto da árvore do pecado original, lustroso, brilhante, improvável num cenário feito de silêncios, numa poesia de gestos.
Na primeira dentada, minha, dele, os sucos refrescantes do néctar, em uníssono acariciaram os segredos da alma, saciaram a sede de forma doce, mas não tanto, quanto a voz de Luena num eco cristalino:
- Estas maçãs são uma delícia!

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