Embora não sendo poesia, há poesia e muita emoção neste texto, nesta memória, que partilho convosco.
«Quando eu morrer não se esqueça de mim». A memória esvai-se. Quero-me lembrar da expressão, do sorriso límpido, de uma beleza despovoada como o deserto. Da tua juventude. Não tinhas vinte anos, isso é seguro. «Não se esqueça de mim!» Lembro-me da combina: «Só quero durar até ao Natal». Porquê o Natal, Deus meu? Tu que irias ter com os anjos todos os dias, e contar coisas da Terra e dos homens, tu que fazes já parte do paraíso e sempre fizeste. «Até ao Natal, doutor», depois pare as torneirinhas que regam as minhas veias, tentando manter o verde da vida, das plantas com viço que no meu jardim, à míngua de seiva, soluçam em tons de castanho. «Não se esqueça de mim». Não me esqueço de ti meu menino Jesus feito menina. Tu só querias viver até ao dia em que nasceu aquele que dá sentido às coisas. Porquê meu Deus? Cumpri a minha parte e tu cumpriste a tua. Não mais quimioterapia depois do Natal, só a tranquilidade dos que têm fé e sobem, devagarinho, perante nós. «Não se esqueça de mim». Como te posso esquecer? És só uma voz, uma esperança, um fio de coragem, coisa pequena, apenas regato. E no entanto, amo-te como a uma visão, uma miragem que deixasse uma marca de privilégio por ter tocado a tua mão. Tenho a memória exacta do cancro. Começava no pescoço. Devagarinho subia através da nuca, silencioso, determinado como fera no capim. Penetrava o osso, abria o embrulho que esconde e protege a tua alma, e em tons de branco e cinzento, devagarinho, corroía o cérebro. Primeiro encostou-se, depois embuste, como erva daninha, começou a alimentar-se do teu sangue, sorveu a tua vida, entrou sem pedir licença. Conheci-te porque ao tocar o teu íntimo, a doença, calcula, fazia-te ver estrelas. Pequeninas, brilhantes e fugazes. Estranhas, contudo, porque surgiam durante o dia. «Doutor, não se esqueça de mim». Não me esqueço, nem do remorso pela pirueta de artista amestrado que se enche de orgulho pelo diagnóstico certeiro, ainda que seja o de uma flecha implacável que marca o destino. As estrelas que vê, minha querida, não habitam o céu, são fogo de artifício da doença que a consome. Coisa estranha a epilepsia. O cérebro invadido cria por momentos a ilusão de um firmamento. Eu vou tratá-la, quero dizer, trazer as estrelas à terra e apagá-las com um sopro. Como velas em dia de anos. Ao mesmo tempo, minha querida, apagar a ilusão. Eu próprio baterei palmas ao golpe de mágica que faz desaparecer as estrelas como te afastasse, te adiasse o Céu que no fundo desejavas. «Até ao Natal, doutor, e depois, não se esqueça de mim».Agora, onde estiveres, de certeza que há Mar. Brincas com o Menino Jesus que querias conhecer, a cuja festa de anos não querias faltar, menina que espera o nascimento do irmão. Escavam na areia crateras que a maré enche. Ouvem o adeus das ondas e sentem o abraço do seu retorno. De certeza que discorrem sobre coisas de somenos importância, quem sabe disputam pás e ancinhos, clamando pela Nossa Senhora que ponha ordem naquela disputa. Estou certo que levaste a melhor, e o menino Jesus, a cujos anos não querias faltar, faz carranca e beicinho. Nossa Senhora irá decerto lembrar a generosidade que é necessário te: com quem se convida para os anos.» Deixa a menina brincar». «Só até ao Natal, doutor, e não se esqueça de mim». Não te esqueças tu de mim. Onde estás lembra-te de que cumpri a minha parte, lutei contra a besta que te consumia e de mim te apartava, apaguei as luzes que pareciam estrelas e criei a ilusão de adiar a eternidade. Como se fosse possível, meu Deus, haver vida para além do Natal.
Nuno Lobo Antunes, in Sinto Muito
«Quando eu morrer não se esqueça de mim». A memória esvai-se. Quero-me lembrar da expressão, do sorriso límpido, de uma beleza despovoada como o deserto. Da tua juventude. Não tinhas vinte anos, isso é seguro. «Não se esqueça de mim!» Lembro-me da combina: «Só quero durar até ao Natal». Porquê o Natal, Deus meu? Tu que irias ter com os anjos todos os dias, e contar coisas da Terra e dos homens, tu que fazes já parte do paraíso e sempre fizeste. «Até ao Natal, doutor», depois pare as torneirinhas que regam as minhas veias, tentando manter o verde da vida, das plantas com viço que no meu jardim, à míngua de seiva, soluçam em tons de castanho. «Não se esqueça de mim». Não me esqueço de ti meu menino Jesus feito menina. Tu só querias viver até ao dia em que nasceu aquele que dá sentido às coisas. Porquê meu Deus? Cumpri a minha parte e tu cumpriste a tua. Não mais quimioterapia depois do Natal, só a tranquilidade dos que têm fé e sobem, devagarinho, perante nós. «Não se esqueça de mim». Como te posso esquecer? És só uma voz, uma esperança, um fio de coragem, coisa pequena, apenas regato. E no entanto, amo-te como a uma visão, uma miragem que deixasse uma marca de privilégio por ter tocado a tua mão. Tenho a memória exacta do cancro. Começava no pescoço. Devagarinho subia através da nuca, silencioso, determinado como fera no capim. Penetrava o osso, abria o embrulho que esconde e protege a tua alma, e em tons de branco e cinzento, devagarinho, corroía o cérebro. Primeiro encostou-se, depois embuste, como erva daninha, começou a alimentar-se do teu sangue, sorveu a tua vida, entrou sem pedir licença. Conheci-te porque ao tocar o teu íntimo, a doença, calcula, fazia-te ver estrelas. Pequeninas, brilhantes e fugazes. Estranhas, contudo, porque surgiam durante o dia. «Doutor, não se esqueça de mim». Não me esqueço, nem do remorso pela pirueta de artista amestrado que se enche de orgulho pelo diagnóstico certeiro, ainda que seja o de uma flecha implacável que marca o destino. As estrelas que vê, minha querida, não habitam o céu, são fogo de artifício da doença que a consome. Coisa estranha a epilepsia. O cérebro invadido cria por momentos a ilusão de um firmamento. Eu vou tratá-la, quero dizer, trazer as estrelas à terra e apagá-las com um sopro. Como velas em dia de anos. Ao mesmo tempo, minha querida, apagar a ilusão. Eu próprio baterei palmas ao golpe de mágica que faz desaparecer as estrelas como te afastasse, te adiasse o Céu que no fundo desejavas. «Até ao Natal, doutor, e depois, não se esqueça de mim».Agora, onde estiveres, de certeza que há Mar. Brincas com o Menino Jesus que querias conhecer, a cuja festa de anos não querias faltar, menina que espera o nascimento do irmão. Escavam na areia crateras que a maré enche. Ouvem o adeus das ondas e sentem o abraço do seu retorno. De certeza que discorrem sobre coisas de somenos importância, quem sabe disputam pás e ancinhos, clamando pela Nossa Senhora que ponha ordem naquela disputa. Estou certo que levaste a melhor, e o menino Jesus, a cujos anos não querias faltar, faz carranca e beicinho. Nossa Senhora irá decerto lembrar a generosidade que é necessário te: com quem se convida para os anos.» Deixa a menina brincar». «Só até ao Natal, doutor, e não se esqueça de mim». Não te esqueças tu de mim. Onde estás lembra-te de que cumpri a minha parte, lutei contra a besta que te consumia e de mim te apartava, apaguei as luzes que pareciam estrelas e criei a ilusão de adiar a eternidade. Como se fosse possível, meu Deus, haver vida para além do Natal.
Nuno Lobo Antunes, in Sinto Muito
1 comentário:
Auxília è realmente poesia este texto onde transpira a emoção, a delicadeza e ternura numa abordagem a uma doença de passos silenciosos e avalanche interna tudo destruindo ao seu redor.
Conheço bem esses corredores, essas gotas de caimento constante, esse alívios falsos de morfina e ao mesmo tempo embora o deseje não conseguirei mais apagar essas rotinas de dor nos outros, nos bébés que os vi sim, nas crianças feitas adultas na condução
de carrinhos de escuras plaquetas,
nos adultos em revolta, em alguns mais velhos e conformados.
Todos eles os vivos e os que já não estão entre nós merecem este texto e a sua mensagem "Não se esqueça de mim".
Até breve e obrigado pelo texto.
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