Tu querias inundar-me
de beleza,
Mas és belo e incapaz
por natureza
de um degelo
ao amor em rigor mortis
que aqui jaz
Em vez disso, que certeza
tu me dás
Do poder tão criogénico
Tão capaz
e com desvelo
o amor on the rocks
consumirás
A batida é devagar,
A veia pulsa atrasada
Aos flocos o sangue cai
em quase nada
Numa neve
Vascular
Zango-me então contigo
Deixas-me aqui neste estado
Com o peito consumido
E o amor por consumar
Amor em amor fatiado
Meu coração sem sentido
Jaz sentado sem pulsar
Em arca frigorífica
Do meu peito hipermercado
Abatida devagar
A voz é pausa marcada
De flancos o amor cai
Da escada
Numa febre
Glaciar
Não penses que te deixo impune
Depois de gelares o meu peito
Rompeste a corda que une
Fizeste "eu" do "nós" desfeito
Espero-te numa outra esquina
Com veia gelo de assassina
E um revólver apontado
Agora sou eu que grito
Devolve-me já neste instante
Todo o tempo que tomaste
Do meu coração assaltado
Meu coração assaltante
Criminoso amor tornaste
Agora sou eu que dito
Cem mil dias de cobrança
Pelo amor que é sentença
Teu amor, tua poupança
Que nunca comigo gastaste
Não chames que te trago de volta
Depois dos teus crio-danos
Deixaste meus sonhos à solta
Agora solta os meus planos
Bate o dente, bate o dente
Nem que tente, nada tenho
Coragem, vontade ou empenho
De te assaltar o calor
E vejo os logrados desejos
De um amor que degele
Este frio, esta tristeza
Olho e tu já não estás
Debaixo da minha mesa
Mas persistes sob a pele
9 comentários:
Impossível ficar indiferente a este samba, passeamos nas "bossas novas" dos versos,nas rimas rítmicas de um discurso poético exacto de sentidos, um clima de descrição perfeito.
Vinicius e Drummond devem estar extasiados!
SEm querer desmerecer todos os outros versos que gostei destaco o genial estilo Marlene "Marlowe"
"Espero-te numa outra esquina
com veia gelo assassina
e um revólver apontado...
cem mil dias de cobrança
pelo amor de poupança
do teu coração desarmado"
Gostei muito! Parabéns!
Obrigada José,
Entretanto já depois do amável comentário mudei, mastiguei e se calhar piorei. Mas às vezes fica a sensação de que por mais voltas que se dê não se chega lá. Melhor parar por aqui senão o amor criogénico vira um qualquer amor mutante transgénico.
Muito bonito o teu poema. Gélido e bonito. - quanto a mim muito feminino. É claro que posso corrigir uns versos :)
Prendem-me estes:
"Aos flocos o sangue cai
em quase nada
Numa neve
Vascular"
assim como o desconcerto em:
"Meu coração sem sentido
Jaz sentado sem pulsar
Em arca frigorífica
Do meu peito hipermercado"
Finalmente o garante da firmeza dos esmaltes glaciares que protegem o Mar de qualquer investida teimosa do aquecimento global em:
"Bate o dente, bate o dente
Nem que tente, nada tenho
Coragem, vontade ou empenho
De te assaltar o calor"
A ideia foi genial. E tu seguiste-a até ao polo norte.
Está muito bonito. O frio, o jogo e ritmo destes versos em especial estão uma delícia! Parabéns
"A batida é devagar,
A veia pulsa atrasada
Aos flocos o sangue cai
em quase nada
Numa neve
Vascular
Abatida devagar
A voz é pausa marcada
De flancos o amor cai
Da escada
Numa febre
Glaciar"
Gostei desta "canção" que entoas a esse amor tão glaciar, parecendo que o fizeste, como sempre, com uma leveza e facilidade espantosa. Gostei de muitos versos. Marco aqui o "Fizeste "eu" do "nós" desfeito", sendo que vejo "nós" com duplo sentido. E, no caso do autor empirico ser o mesmo que o autor textual (acho que não estou a dizer asneiras) deixo aqui um conselho em jeito de brincadeira: Depois do gelo, o degelo, derrete já o coração de poeta para poderes sentir o amor quente de inferno outra vez! Como dizia alguém neste blog, e depois de ouvir a Maria Teresa Horta: Não te desapaixones nunca! Ou apaixona-te sempre, uma vez mais, como queiras ;)
Reli os versos,mastiguei o poema, creio que o entendi.E gostei muito. Mas permita-me dizer o seguinte: sou avesso á total submissão à paixão. Esta quer extremos, egoísmo quanto baste ( na1ª fase do enamoramento), e sem ter que passar desapercebida também não gosta de parangonas, nem de parapraxia. Mas tem que haver coerência na bilateralidade e na óbvia duplicidade (casal) e não haver paranoia. Por parte de nenhum dos intervenientes deverá haver sobreestima patológica, pois isto alterará a sua autocrítica e seu juízo genuíno sobre a situação emotiva, levando a muitas e sombrias susceptibilidades e até à insociabilidade. Contudo, o poema fala acima de tudo de amor romântico (2ª fase), de desamor e assimetrias vitais ( por culpa unilateral) mas que não devem ser fatais. Constatar distintas incompatibilidades, assumir a desolação pelo desenlace...sim! Mas aceitar frustração com vingança e crime ( meu coração assaltante, criminoso...)não! Eu sei que apenas se trata de um poema, e quão belo e intocável!
..."Agora sou eu que grito,
devolve-me já neste instante
todo o tempo que tomaste
do meu coração assaltado".
Muito bonito... porque tem que se compensar a seguir, mas poderemos fazê-lo apenas por distanciação e desprezo!
"...depois dos teus crio-danos,
deixaste meus sonhos à solta
agora solta os meus planos".
Sim, quantas vezes é preciso a percepção de liberdade e reiniciar um relacionamento, ou nova paixão, após retemperar , reformular ou recriar os desejos ( pois que o sonho foi-se) mesmo que ele(a) "persista sob a pele"!
Na verdade, o amor/paixão tem razões insondáveis que a racionalidade nunca saberá entender...
Muitos parabéns pela profundidade de descrição desta amálgama de sentimentos que tanto me tocou, apesar da frigidez (frialdade e não anafrodisia) do texto.
Saudações poéticas, António
Obrigada pelos comentários. É mesmo bom ter um feedback porque sinceramente a minha autocrítica é muito incoerente. Tão depressa gosto um bocadinho como se ler uma segunda vez desgosto muito e na maior parte das vezes não sei dizer o que sinto. É um bocado aquilo que a minha mãe sente quando diz que a comida dela não lhe sabe bem, por isso prefere jantar fora. Pois eu tb prefiro jantar fora e devorar os vossos poemas, porque embora me divirta a escrever, os meus são incomestíveis para mim!
Em relação à criogénese, a sua origem foi meramente efeito do frio exterior. Posso dizer que o autor textual e o autor destes sentimentos invernosos não são o mesmo...e portanto podem ficar descansados que não vou para uma esquina assaltar corações à mão armada.
Beijinhos a todos e obrigada pelos comentários
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