terça-feira, 21 de outubro de 2008

bilhete

quero outra vez desculpar-me. esqueço que os preliminares devem durar todas as horas de todos os dias. não é que não te tenha carinho. só não sei como to hei-de entregar. estou tenso e cobro-te aquilo que não devo. sempre foste o melhor desta minha vida confusa e cinzenta e preciso de sentir que ainda és minha. quero ser controlado, seguro, sentir-me realizado. quero ser quem mereces. a maior parte dos dias sinto-me cansado, incompleto, abandonado, ridículo. não desisti mas já não tenho expectativas. já reparaste que nos transformámos em lugares comuns? não tem importância. continuo a amar-te como antes. talvez não como antes, mas o teu ventre é ainda a minha verdadeira casa. logo chego tarde. janta e não esperes por mim.

R. Patriarca

4 comentários:

Ana Luísa Amaral disse...

bom texto, Raquel! achei muito sugestiva essa questão "já reparaste que nos transformámos em lugares comuns?" -- como se o sujeito enunciasse o que de facto é também lugar comum -- o masculino aqui. gostei do despojamento, das frases curtas, do não hiperbólico. e de um exercício que me pareceu resultar muito bem. muito interessante

liliana disse...

Gostei muito do teu texto, da realidade do vazio que nunca largamos totalmente, a nossa incompletude e paradoxalmente a nossa parte e o nosso lugar no outro ... porto seguro e incompleto de amor e presença

José Almeida da Silva disse...

Gostei.Belíssimo texto. Traz à sua epiderme um não sei quê de complexo de culpa (ou, se quisermos, a incapacidade do amor total, atencioso, partilhado na mesma dimensão). Uma demonstração do egoísmo inconsciente que existe nos homens (às vezes, nas mulheres!). Um amor "self-service". Ou "prêt-à-aimer". Não admira,pois, a transformação, também inconsciente, em «lugares-comuns». E a vida continua na sua monotonia, mesmo nos actos necessários.

Parabéns pelo excelente texto e pelo olho clínico com que olhou a realidade.

Elza disse...

Gostei muito desta ideia de um bilhete. Simples, e no entanto, onde tanta coisa fica dita nas entrelinhas...