terça-feira, 8 de maio de 2012

esta carta que te escrevo ( XVII )


                                       imagem retirada da internet



escrevo-te esta carta para que a guardes
como a fina pele de flores dentro de um livro
para encontrares assim de repente junto de um sublinhado
uma marca de lápis de uma frase ou um verso importante
mas sem tempo nem hora marcada, assim de surpresa.
vou-te contar, começa assim:

águas mil e não é abril, um maio de flores, um maio aberto
como se não fosse a cidade e antes um cimo de um monte-
um maio bravo que se veste de muitas cores e um maio terno.
nunca ninguém se cansa do afecto quando ele nos abre a alma.
é verdade, é uma poção que nasce sem invenção de objecto
é um calor de pele e um incenso que arde;
uma mão de terra que de repente desperta e solta  uma semente
uma terra que liberta e na libertação explode a parte mais frágil
que sobe, de passos lentos, e procura o sol, de passos lentos
e segura o húmus numa raiz profunda para que migre por aí acima
ganhando o corpo e a força, o volume de braços de folhas e flores
e frutos de cor vermelha –

maio é um mês de cerejas, brincos de cor brilhante, rubras de rompante
a rodar dentro da boca, na sonoridade que se abre e dispara doce
sobre a língua, o sabor intenso –

hoje cai um mar de água sobre a cidade
e as terras recebem de novo a humidade abundante
a agricultura respira de uma seca precoce, cessa  o perigo de desertos.
a chuva não me incomoda, porque há uma grande claridade.
sinto que sentes,  e ao sentir faço mais desenhos
penso de novo nas aguarelas na forma de procurar 300 gramas
a composição adequada de algodão para que a transparência
e o inusitado azul seja um céu, completo, completamente perfeito
um céu de um celeiro, em construção, uma obra, a composição –

Cézanne tem obras de uma naturalidade morta, estudiosa
mas não são essas as que mais me impressionam
porque quando mais jovem subia às árvores e sentava-me nos galhos
roçando as cascas dos frutos  nas gangas e nas sarjas das calças –

sentava-me nos ramos como se fossem cadeiras
como se fossem cadeiras de madeira e palha, as cadeiras das aldeias
cadeiras que cumpriam muitas tarefas:  altas para sentar à mesa
e mais pequenas para acomodar as lenhas nas grandes lareiras;
potes de barro,  potes de ferro, batatas com casca e muitas proteínas.
lareiras grandes onde se queimavam enchidos e se assavam castanhas –

mas falava de Cézanne, Cézanne tem outras obras, obras que aprecio
e vem o tema  a propósito de aguarelas, uma aguarela de um quadro
um pouco mais do meu jeito, as paredes da sala, o azul, um brilho mais vivo
e vem o tema  a propósito de um outro tempo,  sem computadores, na aldeia
onde nas tabernas se juntavam homens para jogarem cartas.
os homens exigiam a presença de copos de vinho e passavam o tempo
com vozes grossas e enroladas
com o lápis a fazer cruzes e de quatro em quatro a fechar bolinhas
a completar um jogo sem match point, uma sueca ou uma bisca de sete ou de cinco –

mas chega, falo muito e assim não adormeces, não te esticas com o rosto de lado
e não aproximas os joelhos; o ângulo agudo do colo, as pregas do pijama
um pijama de tshirt hello kitty e calças às riscas –

abres os olhos e fazes-me perguntas. sossega, não há pressa. agora adormece.
o meu gato branco invade-me as pernas, pisa um bocadinho a pousa as pálpebras
e depois senta-se, escolhe de que  lado arredonda a cauda e assume a posição de esfinge
antes de cair redondo com os bigodes e o seu rosto de linhas,  e adormecer calmo e de mansinho –

sossega. eu calo-me. guardo  alguns segredos para que maio aconteça.
não te quero com os olhos abertos nas portas da madrugada. cansas-te.
prefiro que ouças músicas, músicas suaves ou fortes, acústicas ou de rock
mas sempre com palavras de poros, palavras silvestres, palavras de significados
como as ondas e as praias
que se repetem –

hoje convoco a música das sereias, um búzio gigante
um búzio do tamanho de uma cidade
e a repetição das ondas numa aurora boreal
hoje reclamo o sorriso dos teus olhos , na distância
como um hino puro e a união de duas luas
uma lua cheia e uma lua grande, as duas, uma –

mas não te assustes, não faço barulho, guardo o batuque esquerdino
a liana de selva dentro do peito como um pêndulo
marcando todos os segundos;
o boomerang dos sentidos, que vai e volta, que vai e volta
que te rouba um pouco de creme de noite  da face direita
e que a traz nos lábios para que permaneça
pela noite inteira -
pela noite inteira -
pela noite inteira -

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