terça-feira, 17 de abril de 2012
a carta que te escrevo (V)
escrevo-te esta carta para que a guardes
agora mesmo, que a respires no momento
como a essência de um aroma, um aroma azul
de lábios lentos percorrendo a testa.
vou contar-te, começa assim:
reparaste no vento invasor pelas primeiras horas do dia?
saí descalço, com o impulso de uma alma célere.
encontrei olhos desconhecidos e ruídos de carros,
solavancos nos passeios da avenida como se fossem margens
e rios secos invadidos de barcos estranhos
na chiadeira das borrachas –
o sol brilhava e desta forma abundavam os óculos escuros.
saí descalço, com a alma à mostra na melancolia do rosto
e o vento invasor a percorrer-me os bolsos
a descobrir as palavras amarrotadas, os poemas por dizer –
um dia gostaste de um que falava do algodão doce de uma feira de aldeia
uma outra vez de uma mota parada na porta de uma porta que se abre
uma noite gostaste de um sonho de ser peixe num meio de um aquário
uma outra de um rio silencioso, nocturno, de ouvidos de água,
para que todos os peixes saibam –
um dia falámos de livros por ler e escrever num cimo de um monte
olhando clareiras e gatos de cauda oscilante no ronronar de ralos de searas
um dia falámos de olhos na frente dos olhos sem nos tocarmos,
uma outra encostámos os rostos como se fôssemos duas luas que se encontravam,
com os lábios órfãos acendendo a noite, uma noite nos jardins do Palácio
subindo às árvores, imitando os pássaros –
um dia sonhámos nos olhares cruzados e os pés recuavam
naquela forma impossível de se encontrarem;
intermezzo, intervalo, um picollo espaço, um attimo
é assim que nos vejo no meio das palavras
suspensos no medo das verdades. linhas, linhas, somos linhas
linhas muito finas escorregando sobre o peso de chumbos
escorregando do alto dos rochedos para se esconderem no fundo mar –
poderão as algas unir-nos? reencontrar-nos? levar-nos ainda vestidos
para um deserto de uma praia, num universo de braços
para que as roupas se percam, náufragas, sem a preocupação do útil
e do sem sentido, em alguns minutos de eternidade?
ou então para sempre, depois dos primeiros passos
porque duvido dos sonetos da separação, há músicas que nos abrem
teclas de pianos que batem nas cordas
incessantes, como as cartas e os versos que te escrevo –
desculpa, sei que te cansas, que te aborreces destas lavas rápidas
demasiado líquidas, que vês improváveis, sem marcas sólidas, sem pés de estrada –
a noite seria de olhos sempre abertos se te soubesse triste -
se te cansas
deixa cair as pálpebras com estas palavras vulgares de alguém que te ama
– e é uma palavra tão pesada,
uma brasa e uma chama, a palavra que se junta numa outra palavra,
de tudo ou nada, esta de quem ama –
se te cansas
diz-me, sem qualquer receio, como um sussurro de ar que passa por um limoeiro: calaaa-te…
deixaaa-me dooormir … com o meu anjo da guaaarda….
escrevo-te esta carta para que a guardes
mas se o desejas, rasga-a em mil pedaços, em bocados de farinha, um pó que colapse
serei um silêncio parado sobre a tua alma,
inconhecível como uma lira suave, uma canção de embalar
um rosto de mãe se assim quiseres
para que adormeças sob o brilho de diademas
no maior dos sossegos
e em paz –
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3 comentários:
José,
Faço um intermezzo, intervalo, um picollo espaço, um attimo
para lhe dizer que gosto destas suas cartas.
Não sei o que existe na estrutura de uma carta que torna a sua leitura numa mensagem íntima e deixa ao leitor esta sensação de se imiscuir num sussurro que não era para si.
Como se levantássemos o auscultador e na linha cruzada ouvíssemos uma conversa perdida.
Também gosto do inconhecível como tudo o que se desconhece por pura impossibilidade.
E Chacall acompanha num azul perfeitamente dentro do tom
Bjinho
Marlene
Adorei mais esta carta. Dá vontade de roubar estas cartas e andar com elas no bolso para ler de vez em quando numa pausa do tempo. Beijinho
Queria dizer Chagall :)
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