sábado, 7 de abril de 2012
a carta que te escrevo ( II )
escrevo-te esta carta para que a guardes
sempre,quando juntar cinquenta, escrevo um livro.
vou-te contar, começa assim:
nasceu a manhã uniforme pelos cantos da casa
um dia de feriado, um dia apressado de quem parte
um dia diferente para alguém que faz anos –
a pressão do vento é a mesma, aproxima o sangue
faz deslizar o rio vermelho, aquele que ambos conhecemos
aquele que não oprime os cavalos porque não se domam as ondas
nem o mar –
não vou dirigir as palavras para as águas paradas, para hexágonos de cristal
para que solidifiquem como sal e parem, para que se tornem rotina, iguais
a diferença é ser diferente, cuidar dos teus medos
compreender o espelho dos segredos;
uma viagem interminável, disse –
pergunto-me do que fazes na manhã fria, na noite distante
se te estendes sobre um livro de versos ou prosa de muitas folhas
se encostas os ouvidos nas claves que voam de colunas
não gregas, mas transparentes de ideias mais planas e leves
como penas de ganso numa almofada branca.
será que me ouves quando te deitas na cama ? –
pergunto-me da tua mão, onde pousa , por onde adormece
pergunto-me se roda incessante sobre um taça de creme
ou uma massa de bolo, doce antes de entrar no forno
nesta época de festas –
pergunto-me de um moleiro e de um moinho
de uma lança louca sobre a miragem de Cervantes
moendo farinhas, misturando as nuvens, as imprecisões dos dias
para que se transformem na delicadeza da língua
no tecido de algodão egípcio, o mais fino–
pergunto-me da tua roupa
de um pijama largo rodando sobre as janelas e as portas abertas
rodando na envolvência dos braços numa música redonda
que circula nas artérias e cria o sonho -
pergunto-me de um cão, um gato, um rouxinol abrindo o bico
um papagaio de papel, um areal de praia, as linhas escritas –
pergunto-me do meu juízo e do teu abrigo
de tudo junto como uma cabana na praia, no meio de um autocarro
no centro da cidade, por cima das palmas de um espectáculo –
não seremos o exclusivo do mundo, mas sem recusar raízes
e ramos e folhas de todas as idades, podemos ser um só
ao unir em uníssono os sentidos, um lugar no paraíso –
pergunto-me do teu diário e das palavras que me dizes
se porventura falas comigo como eu falo dos destinos
e lembro a longínqua canção que ouvia, repetida
“how can I tell you”
percorrendo o amor em palavras límpidas, lavadas
unindo o desunível “like the shoreline and the sea”, dizia -
escrevo-te esta carta para que a guardes
como a cronologia de uma harpa, cordas cingidas
derrubando as colinas, a imprevisibilidade dos caminhos
a distância húmida dos anos –
canso-te, sempre me acontece e não quero que te canses
desculpa-me
descansa os musgos e as pestanas pela noite inteira
descansa, adormece em sossego pela planície do silêncio
como se fosse um sonho que se irmana, que se divide
e que se sente de um e de outro lado da semente -
ouço um pêndulo, o tempo avança -
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1 comentário:
José,
Esta ideia de 50 cartas é muito boa.
Gostei também muito desta e do ritmo impelido pela indagação constante: "pergunto-te"
Uma carta que fala alto e é ouvida
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