sábado, 18 de fevereiro de 2012
MALHAS QUE OUTRO IMPÉRIO TECE - Ana Luísa Amaral (Jornal Público, 17 de Fevereiro de 2012)
António Cruz
MALHAS QUE OUTRO IMPÉRIO TECE - Ana Luísa Amaral (Jornal Público, 17 de Fevereiro de 2012)
Contra o costume, cheguei cedo demais à estação de Santa Apolónia, onde vou apanhar o comboio para o Porto. Comprei o bilhete e, contra o costume, fiquei ainda com tempo à minha frente para tomar um café. O pequeno bar da estação está cheio de jovens. Sentaram-se três à minha mesa. Um deles segura entre as mãos um pequeno tambor colorido e marca um ritmo; sempre o mesmo, assim me parece. Os outros dois bebem galões e comem sandes tiradas das mochilas. Noutras mesas, outros grupos. Falam todos pouco e têm olheiras. São sete da manhã e o concerto deve ter acabado há umas horas. Estes jovens vêm de fora de Lisboa e passaram a noite na estação, à espera do comboio que os há-de levar de volta a suas casas.
Nestes tempos que são nossos, haverá quem lhes critique o cabelo e a forma de vestir. Todos de igual, de calças muito largas, as cores que predominam não variam muito: o cinzento, o preto, ou o azul-escuro. Alguns têm trancinhas, muito finas, enfeitadas, algumas, com missangas coloridas. Haverá ainda quem, olhando estes jovens, pense em lhes dizer coisas como «vai trabalhar!», sem pensar que não há trabalho que lhes valha; ou haverá quem os olhe com olhos de inveja pelo dinheiro gasto no concerto, pelo ócio, ou pela pura juventude.
Não há muitos anos, neste lugar que é nosso, a jovens como eles chamaram-se nomes, denegrindo a sua geração, sem se pensar que não há gerações espontâneas, a não ser em teoria, e que as genealogias têm sempre progenitores. Há muito pouco tempo, uma outra geração de jovens como eles, quem sabe se incluindo alguns destes que aqui estão, agora sentados no chão da estação, haveria de aproveitar o epíteto e com ele brincar, em jogo de palavras. E esta nova geração saiu às ruas, e a ela juntaram-se as gerações de seus pais e avós. E cantaram nas ruas, ao lado de outras idades, canções talvez diferentes destas que agora trazem no ouvido, pedidas emprestadas ao concerto, mas de um igual empenho na alegria da vida e no reclamar de um lugar melhor e mais justo. Foi essa a sua palavra de ordem: justiça. Podia ser também o direito à alegria.
Entro agora no comboio e eles entram também. Quase enchem a carruagem. Há um que se senta a meu lado. São todos muito jovens e alguns muito bonitos. E têm, pequenos de cansaço, tremores de alegria. Dois deles mostram-se gentis, quando passa uma senhora de idade. Outros gracejam sobre as aulas; por vezes, palavrões a meio, sorriem; ou, um pouco mais refeitos pelo bem-estar da carruagem, dançam, em arremedo do ritmo que há algumas horas os animou. Estava à procura de uma palavra para os descrever. Talvez seja «vulneráveis»; ou «inseguros», como somos todos. À procura das coisas, e de sentidos para as coisas. Como nós todos.
Noutros tempos, iam para as Cruzadas; e lá matavam e morriam, alguns acreditando que havia razões para matar e morrer, outros, descrendo. Em todos os tempos têm sido forçados ou convencidos a coisas que contra eles são. Muitas vezes a eles tem pertencido a capacidade de uma generosidade sem limites. Estive uma vez num cemitério inglês, que era enorme e tinha uma lápide gigante com os nomes dos mortos das duas grandes guerras que mais assolaram o século há pouco acabado de passar. Entre os nomes que desciam, à medida que descia o meu olhar, alguns apelidos eram iguais, só as datas mudavam, indicando que àqueles nomes correspondera um jovem pai que fora morto, e, vinte e poucos anos mais tarde, o seu filho, morto também, desperdiçado. Uma geração os separara. Uma geração de vida gerando a morte. E era, nesse dia raro de sol, uma visão impressionante, o resultado da luta de povos contra povos, mas também de combate contra uma liberdade ameaçada e contra a invasão da barbárie.
Mas nunca nenhuma guerra fez de facto sentido e sempre houve quem se aproveitasse, do seu lugar de privilégio e bastidores, de jovens como estes. Lembrou-me então o poema do jovem soldado, de cujo bolso caíra, breve, a cigarreira. Inteira e boa. E ele, o desperdício, ele a já não servir, a não ser os desígnios que não traçara, feitos de malhas por outros tecidas. Estes jovens que estão agora ao meu lado, neste lugar que é nosso, estão vivos e não os ameaça ainda, ao que parece, a guerra feita de bombas, mísseis e camuflados, embora os ameace uma outra guerra feita de números e uma nova barbárie, e camuflada de rigor e uma assustadora precisão, no que toca ao que de mais humano temos, que é a alegria e a capacidade de pensamento, de inquirição e de espanto. Mas estes jovens estão vivos. E são jovens.
São jovens, e é justo que cantem e vibrem com a música que é a deles. Noutras culturas, os tremores que sentem terão outras razões. Seja como for, é justo que tremam de alegria. Injusto é quando lhes dizem, cinicamente, que o futuro está só em outros lugares e não nas casas a que agora voltam; ou quando o seu olhar se enche de coisas avessas a este cansaço de memórias boas de partilha e tambores coloridos. Injusto é quando os levam a desacreditar, por circunstâncias várias, que um quadrado de papel, numa urna a não evocar morte, pode mudar o mundo, ou quando os impelem a duvidar que as palavras podem servir como motor de mudança e resistência. Injusto é quando deles se espera a cega obediência, sem perguntas nenhumas, e que esta sede de partilha, este tremor ainda de alegria seja já, nestes tempos que são nossos, ameaçado pela raiva e pela desesperança.
Passaram duas horas. As vozes na carruagem afrouxaram de volume, tornaram-se escassas, à medida que o sol entra com mais força pelas janelas. Está calor. No assento ao meu lado, o meu jovem companheiro de viagem adormeceu. Veste umas calças muito usadas, de corte estranho, que eu elogiei e ele me disse ter comprado baratas, numa feira. As calças têm um fecho éclair que sobe desde a bota até à anca. Só enfeite, não serve para nada o fecho éclair. O seu dono, porém, ao que parece, está inteiro e bom. E dorme, ainda sossegado. Ao seu lado e ao meu, teimam-se os tempos que são nossos. Destes tempos me pergunto se ele sabe se ainda, e ao que, serve –
Ana Luísa Amaral
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