quarta-feira, 26 de maio de 2010

Três contos sobre Lírios



“A Literatura é um pacto com o absurdo…”

Rober Diaz


A cultura é o que fica quando tudo o resto é esquecido: Contra esta premissa Julian Artl cozinhou as doze folhas de gelatina onde tinha três dos seus últimos contos. O cão andava na cozinha. Vi no seu prato de comida misturada com um pedaço de ração uma folha de gelatina crua que o cão se tinha recusado a comer; estava endurecida, e dizia a marcador: A cultura é tudo o que deve ser esquecido: Julian foi ao prato do cão e pôs esta folha na panela onde já coziam outras, juntou dois xanax esmigalhados e açúcar.

Depois da gelatina estar pronta o cão comeu-a e ficou a dormir. Ele sentou-se na sala comigo e contou-me a sinopse dos três contos: um deles passava-se na Antiga Grécia e uma rapariga com uma fita azul na cabeça “masturbava um lírio” e depois disse: o lírio ficou viciado nisso, e esperava a rapariga, que umas vezes aparecia e outras vezes não; e o lírio começou a murchar: o segundo tratava de um escritor que tinha ganho uma bolsa de criação literária na Islândia e conseguiu, junto do consulado, autorização para visitar o vulcão em erupção, apresentando um projecto de criação inovador que tinha permitido ao júri pressionar as autoridades civis para o autorizarem como o único membro externo à protecção civil e aos bombeiros a visitar a ilha. Foi de barco e conseguiu junto dos comandantes autorização para subir ao vulcão com o seu último romance e um lírio; atirou o lírio para dentro do vulcão, depois atirou o seu último romance, em fases de provas e exemplar único a aguardar publicação – Depois atirou-se a ele próprio para dentro do vulcão. O terceiro conto tratava de uma rapariga que em 1945 vivia perto de uma aldeia de Nagasaki e tinha por costume masturbar os lírios: um dia saiu de casa e viu um cogumelo de fogo a elevar-se no ar, e viu as sombras espalharem-se pelos campos e no lugar dos lírios havia a sombra dos lírios: Ela meteu uma fita verde no cabelo, e tirou as cuecas por baixo das saias. Sentou-se no chão e esperou. O quarto conto era sobre um homossexual não assumido que entrou numa sex-shop de Roma, perto da estação de Octaviano para comprar um dildo. Tocou à campainha e a porta abriu-se automaticamente; Desceu uma escada onde estava um indiano ao balcão a falar com outro indiano que via num monitor extractos de um filme porno, alguns clientes estavam a ver os dvd’s. Dirigiu-se à secção dos dildos, escolheu um e foi pagar. O indiano olhou para ele de forma perversa; começou a persegui-lo nos dias seguintes. Não me contou o fim da história (que o cão tinha comido – folhas de gelatina gravadas com marcador vermelho cozidas com xanax e rum) O cão dormia, com os quatro contos dentro de si, e isso não lhe provocava qualquer reacção: apenas uma dependência pela medicação e o álcool que o fazia seguir com atenção todos os gestos de Artl quando este escrevia ou estava na cozinha.

Tudo isto Julian Artl contava-me enquanto fumava um cigarro e dizia que em pouco tempo ia para Berlim, onde o esperava Kant, o DJ Kant, eu disse que não conhecia o DJ Kant, ele disse-me que era um homem de uma inteligência fora do comum que nunca tinha lido um livro no mundo mas que era o único crítico capaz em todo este início de século. Disse que não lhe ia levar os contos, porque os contos tinham sido comidos pelo cão que continuava a dormir. Mas que queria falar com DJ Kant sobre literatura: Fui levá-lo dois dias depois ao aeroporto.

Nuno Brito

Sem comentários: