“Que farei quando tudo arde?”
[Sá de Miranda (1481-1558)]
[Sá de Miranda (1481-1558)]
Não sei se sou capaz de lavar o meu olhar
Do fogo e da dor que lavram no universo.
Não sei. Sou náufrago das chamas desmedidas
Deste tempo humano sem paz e incapaz de um verso.
Nem as chuvas todas de todos os invernos do universo
Podem lavar as franjas do teu nome a céu aberto.
Impossível reescrever a paz e a ternura da alma
Das crianças sobre a tentativa do apagamento do sangue
(tão vivo aos olhos das mães, dos pais e dos irmãos)
Inocentemente vertido pelo chão. Impossível. Voam as bombas
E a carne dos suicidas embatendo cegas na inocência das crianças
E dos homens embrulhados no medo e na morte sem esperança.
Impossível não olhar a morte amortalhada na brancura pálida.
Impossível não sentir a revolta desmedida. Impossível não ter medo
Até somente do teu nome. Impossível não possuir insónias geradas na dor
E nas imagens das atrocidades que os olhos assustados gravaram na alma
Indeléveis. Impossível não olhar as armas cruéis que vieram em busca de outras
Armas. Impossível não sentir o ódio como mortífera sombra de poderes alheios
De interesses disfarçados, de mentiras vestidas de verdades, de enormidades.
E há quem durma a sono solto sem lavar as mãos e o olhar ensanguentados.
E há quem coma sem nojo entre cadáveres frescos por lavar. E há quem lave
As mãos secando-as em toalhas de linho enxovalhando-as como se fossem
Lençóis onde se embrulham tantas ruínas de humanidade. E há quem discurse
Sobre o acto democrático de matar em nome do seu deus em nome da sua paz
Em nome do fingido medo de armas de destruição maciça, quer dizer, em nome
Da preguiça de cuidar no respeito e no direito de existir e de pensar diferente.
E há quem pense que o poder é a força a qualquer preço, mesmo que em apreço
Esteja a morte, esteja o sofrimento, esteja a injustiça, e esteja a indiferença.
Arde no meu olhar o universo. E não sei o que fazer do incêndio que devora
Homens e mulheres e crianças que trazem somente por horizonte o vazio
Da esperança. E não sei apagá-lo. Como saber apagar a labareda das imagens
Sangrentas das chamas que os devoram? Tudo arde. Que farei?
2008.12.09
José Almeida da Silva
6 comentários:
José, magnífica frase: "em nome/Da preguiça de cuidar no respeito e no direito de existir e de pensar diferente".
R
R
Fica aqui o meu profundo agradecimento pela excelente ajuda.
Quanto à frase, também gostei muito!
José Almeida da Silva
José na atmosfera criada tudo arde e surge como retrato fiel de uma realidade que nos apoquenta e revolta.
"Arde no meu olhar o Universo" na última estrofe parece-me que fica implicita a mensagem que nos quer transmitir: preocupemo-nos com o que está mal e incomoda, só assim estaremos a contribuir para que a indiferença não tome também conta de nós.
Parabéns!
Somos todos 'náufragos da dor que lavram no universo'. Partilho de grande parte desta imagem e reflexão. É bom vê-la escrita assim. Parabéns
José, a mensagem do seu poema é indiscutivel e incontornável. Não me atrevo sequer a comenta-la. Atrevo-me apenas a fazer comentários sobre as palavras, elas próprias. Acho particularmente bonita a imagem da dor que "lavra o universo". Sei que o verbo "lavrar" se aplica às chamas, o que foi sempre para mim misterioso, pois quase me parece uma antítese entre o cultivo que é produção e geração de vida e as chamas que consomem e destroem. No caso da dor, esta dor que lavra o universo, vejo-a como um arado de dentes metálicos que sulcam o universo e lhe semeiam a agonia. Destaco ainda :"E há quem coma sem nojo entre cadáveres frescos por lavar"- poderosa imagem, que contém a violência necessária. Acho que gosto mais das palavras que me batem e maltratam do que as que me fazem festas e cócegas.
Muito poderoso, sim!! Imagens muito fortes, com ressonâncias de Sena --de tal forma que o final (essa pergunta "Que farei?") me parece desnecessária, e um pouco enfraquecedora da força toda do resto... Não sei se concorda.
Enviar um comentário