sábado, 29 de novembro de 2008

sem nomes paralelos


Matisse

..........................."What's in a name"
........................................Romeo and Juliet


não tive cão só gatos -

que ronronam pelos colos lentos
descolados de pestanas
envolvidos de novelos
e que em lambidos cor de rosa
alisam mimos macios pêlos -

não tive cão só gatos -

que saltam muros e telhados
na elegância única felina
de dorsos de montanha
e que em uivos cativos
afiam as garras nos gemidos
das cascas, árvores inscritas
dentro das casas, nos sofás
e em festas de patas descuidadas -

não tive cão só gatos

em brincadeiras de iguais
rolando pelas carpetes
levantando-se como setas
e ficando parados, estudiosos
olhos de lente, orelhas de pedra lascada
focos e faróis
sempre alerta nos sinais -

não tive cão só gatos

história antiga junto ao mar
numa tenda prisma azul;
entre árvores de pinhão
e a fuga de segredo
numa praia de Verão:

"Adidas" de calções e "Kini" perdendo o "bi"
às flores
azuis, amarelas, laranja
e melão às fatias no sumo da manhã
sem toalha nem mesa
onde migalhas sem pressa
planavam até às relvas do chão -
muito depois do meio-dia
o fogareiro a gás entrava na dança
no vapor constante
de uma dura depois mole massa fina
e saladas vegetais
de alface e baldroegas
originais, puras, no rodízio
das palavras, dos carinhos
das metades, em cima, em cima
em baixo, em baixo, de lado
ao lado, adornadas numa crista
de estrelícias, rosas livres de espinhos
aromas silvestres
desafios tacteados de sentidos
sem nomes paralelos,linhas coincidentes -

não tive cão só gatos

delicados no desvio de obstáculos
no cimo dos móveis, contornando os retratos
as molduras dos fatos
vestidos longos, bigodes fartos
e nas portas das casas, nos jardins
ou em baptismos de toucas e laços
rendas largas -

não tive cão só gatos

encontrei-os ao Domingo.
na base alteada de raízes
um pouco de cartão canelado
dois nados perdidos de mãe
fracos, aflitos no miado
um de branco uma de selva
e ambos gémeos no tamanho.
salvou-os o "Corsa" castanho
de aileron e o mini-biberon
de tetina dourada -

ele e ela, os dois, sem nome -

não tive cão só gatos -

ao pôr-do-sol do último dia
sairam os pregos do pinhal
caiu o pano impermeável
ficando oculto o rádio portátil
no interior, pendurado -

anos depois
cresceram os gatos, ele e ela
juntaram mochilas, ele e ela
roubaram os nomes à peça antiga
e houve mais gatos, dele e dela -

não tive cão só gatos -

desceu o pano, sentou-se o ponto
fugiu a cena no teatro sem nome
de uma cidade anónima onde se estende a manta

e os retalhos da memória -

josé ferreira

7 comentários:

josé ferreira disse...

Caros amigos na pressa da publicação tenho dois erros. Ao começar não é "nã" é "não" e falta um "s" aí para a frente devendo ler-se "nas portas". Perdão pelos descuidos!

Joana Espain disse...

E de gatos em gatos, de sete em sete, espalharam a manta pelo mundo (está tão bonito no final que apetece continuar e continuar...) Outra vez um poema de diversas camadas de significados com caminhos sinuosos que nos distraem, mas estaremos atentos:) Parabéns, gostei muito.

Elza disse...

José, segui o seu poema de gatos e outras coisas, atenta, de repente veio-me uma pergunta à cabeça, não sei se tem sentido ou não, sequer se o poeta o pode desvendar: "Não tive cão só gatos." Cães e gatos como Capuletos e Montecchios? Fica a pergunta, um pouco louca, no ar.

auxília disse...

Nunca tive gatos, só cães. Mas também eles "colados" em "retalhos da memória". Gostei muito deste poema. Particularmente da "história antiga junto ao mar
numa tenda prisma azul;
entre árvores de pinhão
a fuga de segredo na praia
de Verão"... Deixe-nos mais histórias, segredos,... José.

M. disse...

Achei imensa graça à pergunta da Elza a respeito da possibilidade de a dualidade cão/gato poder ser uma alusão às duas famílias rivais, porque a mim se insinuou a mesma dúvida quando li o poema. Mais uma vez gostei bastante. Acho que como alguém dizia algures, já consigo saber de quem é o poema sem chegar ao fim. Reconheço já o "estilo" do José com clareza...o que acaba por ser também uma resposta possível à interrogação: "what's in a name"...um estilo reconhecível, uma identidade que faz do José o indiscutível autor dos seus poemas.

josé ferreira disse...

Elsa antes de mais as perguntas nunca são loucas, significa que procuramos respostas. Continuando a divagação fui buscar o livro da história e segundo um senhor Girolamo della Corte que escreveu a vida de Verona, cidade mágica do enredo,em 1594 depois dos escritos do nosso amigo Shakespeare, não existiram nunca nem Capuletos nem Montecchios, foi tudo invenção do "fingidor".
Realmente cão e gato, por sistema não se dão, e dessa forma fica bem no antagonismo das familias divididas e foi o tal primeiro verso que me ocorreu como vos contava há dias, foi propositado e sugerido pelo desafio.
Para mim "what's in a name" é a força de "Romeo and Juliet" esses nomes que todos já pedimos emprestados num episódio qualquer,
numa loucura maior, chamada Amor!

P.S. Gosto de cães e gosto de gatos, os animais são sempre mais compreensivos para todos os nossos
estados de alma, são macios e dedicados!

Ana Luísa Amaral disse...

Muitos parabéns! Gostei imenso!Acho o poema muitíssimo bem conseguido. Tanto, que me atrevo a sugerir um final mais suspenso, por exemplo:

"Desceu o pano, fugiu a cena,
sentou-se o ponto,
estendeu-se a manta
da memória -"