sábado, 11 de outubro de 2008

Os meninos de Angola

Os meninos de Angola
Já não se sentam à roda
Da fogueira...
Não ouvem histórias
Fantásticas, de encantar...
Nem adormecem
Ao som de velhas canções
De magia e de ninar.
Os meninos, apagada a fogueira,
Nunca conheceram a escola,
Os doces,
O riso
E a brincadeira...

Os meninos de Angola
Conhecem a guerra, a miséria, o sofrimento...
Cheiram a morte, a loucura,
A chacina e o tormento,
De um País martirizado,
Ferido,
Sangrado!

Os meninos de Angola
O olhar baço, distante...vago...
Perdido!
As mãos pequeninas, escuras, geladas...
Fecham-se em concha,
Cheias ... de nada!
Bocas ávidas, vorazes...
Lábios finos, ressequidos
Que sugam a Morte, em seios secos...
Sacos gastos, vazios
Pendidos!

Os meninos de Angola
Já não se sentam à roda
Da fogueira...
Jazem e agonizam, na terra nua
Vermelha,
Encharcada de lágrimas,
De sangue,
De horror...

Esqueletos vivos...
Barrigas redondas...enormes
Grávidas de fome!
Prenhes de dor!
Corações inocentes, tristes, cansados ...
Sufocados de medo...
Transidos de frio...
Sob o sol africano, ardente...
Dardejante...suado...sangrento!

África...calor...raios de luz
Flamejantes!
Riqueza, quanta riqueza...
Fartura, gula só...para alguns!
África desumana...egoísta...gananciosa...
Indiferente!
Angola senhorial,esbanjadora,
Vaidosa!
Rica em minério,
Petróleo e diamantes!
Abundância que os meninos não conhecem...
Que não os alimenta,
Não lhes dá vida,
E não os consola!

Os meninos, perdida a Esperança...
Choram e gemem sozinhos,
Mirrados de fome,
A arder em febre!
E, sem nunca ter sido crianças
Choram baixinho
E desesperam...
Desesperam...!

Os meninos de Angola
Já não se sentam à roda
Da fogueira ...
Vão morrendo devagar,
Devagarinho...
E jazem, famintos, esgotados, doentes
No chão ...
Na pedra ...
Na poeira ...!

Refeição adiada dos abutres ...
Que... medonhos, imóveis, salivam...
Salivam gulosos!
E, pacientes...medonhos...esperam!
Esperam gulosos!
Esperam...
Esperam...

Maria Celeste Carvallho

4 comentários:

Nuno Brito disse...

poema muito Forte que reflecte uma situação grotesca, real, violenta, "pouco traduzida em poesia". Daí mais sublime
Imagem muito Forte nos versos:
"seios secos...
Sacos gastos, vazios
Pendidos!
Barrigas redondas...enormes
Grávidas de fome!
Prenhes de dor!"

António Pinto de Oliveira (António Luíz) disse...

É um poema que confessa (denunciar para quê?) uma realidade absurda, parecendo irreal, inaceitável na terra dos humanos! É um grito de desespero, avassalador, mas que por desventura apenas tocará pessoas sensíveis, deixando-as incrédulas. Uma "crónica poética" que mais tarde ou mais cedo deverá ser esfregada na cara insensível de muitos políticos, gananciosos governantes, os piores exemplares da espécie humana. Talvez um dia surjam de novo os Dinossauros predadores para repôr a verdade e a justiça entre os homens. Talvez um dia voltemos a ter orgulho no Homo Sapiens...! Gostaria de ter feito este Poema. Parabéns pelo discernimento e pela coragem , embora eu goste mais de lhe chamar " edificante acto de cidadania". António Pinto Oliveira

SC disse...

Há muitas formas de combater a injustiça e de expor a crueldade, a desigualdade e a desumanidade. A criação poética é uma delas. Este poema é prova irrefutável do poder e da força da palavra.
É um poema desassombrado, revoltado e despido de ilusões, que, sem pudor, retrata uma realidade atroz que o ocidente, balofo de fast-food e recostado no sofá a ver televisão, tenta cobardemente ignorar, em troca de apoios estratégicos, de petróleo e de diamantes sujos de sangue.
A tragédia maior é que os meninos de Angola a que os poema se reporta são os meninos de um continente, vasto e imenso, África, onde os abutres, imóveis e estáticos, apenas esperam..
Considero extraordinário como um poema tão cru e realista consegue ser ao mesmo tempo tão belo...
Sónia de Carvalho

Elza disse...

"Barrigas redondas... enormes
Grávidas de fome!"
Poema impressionante. À parte a Celeste ter, sem dúvida, conseguido ligar à poetisa que tem dentro de si, conseguiu deixar-nos a pensar...