Com o cansaço colado ao meu corpo, termino finalmente de arrumar a cozinha. Nas dobras da banca, repleta, repousam os tachos e os pratos já limpos, reluzentes. No mármore, ao lado, os dois copos ainda tingidos do liquido vermelho, morno e denso que há pouco degustamos juntos. Deixei-os ali propositadamente. Na esperança de que, depois do esgotamento de um dia em cheio, para ambos, as últimas gotas, saboreadas a dois, pudessem levar para longe as cargas que carregamos. Percorro o corredor, com passadas largas, em busca de ti. Já oiço, vindas do fundo, as gargalhadas que dão a dois, tu e essa cabeça farta de caracóis que fizemos juntos, numa alegria desprendida que só uma história imaginária de final de dia, inventada por ti, pode dar. Espreito-vos, tão cúmplices. Por instantes, invejo-vos. Mas, não. O que sinto é ternura e um desejo imenso de me juntar a ambos. Pressentem-me. Sorrisos. Já estou convosco. A teu lado, tão junto dos teus cabelos sedosos, olhando contigo essa coisa tão doce que sorri para nós e teima em não adormecer. Vou diminuindo a luz, de mansinho, e finalmente o silêncio invade o quarto. Saímos. Do lado de lá da porta, nada se ouve. Entre nós continuam as risadas soltas e cúmplices. Da história que inventaste hoje e que agora também partilhas comigo. Afinal, a nós adultos também nos faz bem, depois do peso de um dia de trabalho, das contas para pagar e dos esforços que fazemos para não deixar que o mundo nos engula, imaginar que os tubarões têm asas ou que as cigarras podem cantar rock n’ roll. Talvez seja também um pouco o efeito desse liquido que partilhámos até os copos ficarem definitivamente vazios. Ou mesmo porque, como de tantas outras vezes, ao olharmo-nos, nos olhos um do outro, nos redescobrimos. Sempre. És de mim. Sou de ti. (E aqui, obrigada à professora Ana Luísa por esta dica, e uma concordância com a Teresa, a língua portuguesa dificilmente nos deixará livres destes “estereótipos”/distinções: ele/ela, dele/dela, és minha/és meu, sou tua/sou teu… Bem, de volta ao Carlos em sintonia com Julieta…) Perdemo-nos no escuro da noite que inunda o nosso quarto. Nas sombras, na luz do luar. Para trás fica a carga do dia, a cozinha já arrumada por qualquer um de nós, a história contada… Existimos só tu e eu, a nossa pele, os nossos corpos, as nossas almas. Que são como uma só. Somos diferentes, mas iguais. [Um aparte: Por acaso, há um de nós que, depois de muito ter lutado, já pode alternar saias com calças, conforme lhe apetecer, e o outro, curiosamente, o que supostamente pode tudo, ainda só pode usar calças!? (E ainda bem!!! Digo eu, Elza, eheh…)]. De súbito, a porta abre-se. Um pesadelo de criança dá direito a que se aninhe na nossa cama esse monte de caracóis suaves que é já uma outra parte de nós. Hoje, afinal, a nossa união parece terminar por aqui. Mas, ao olhar-te assim, apenas à distância de um outro corpo tão pequeno que é nosso e já dorme outra vez, com um semi sorriso nos lábios, mergulho fundo no teu olhar e sinto que fazes o mesmo em mim. Partilhámo-nos de uma forma distinta, esta noite. Perco-me em ti. Perdes-te em mim. Perdemo-nos em mil pensamentos concordantes que este longo caminho percorrido a dois, agora a três, tantas vezes amargo, tantas outras delicioso, nos faz partilhar. O meu olhar profundo navega na tua alma tão bela que também mergulha intensa em mim. Já não sinto o cansaço e o peso deste dia. E o meu desejo de ti está satisfeito. Não há qualquer outro lugar do mundo onde deseje estar, mais do que aqui, a teu lado.
Carlos em sintonia com Julieta
Carlos em sintonia com Julieta
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