Salvador Dali 1925
leio as notícias na mesa de perna bamba, no princípio da tarde de um sábado.
um copo oscila e um prato bate. faz ruído
enquanto recordo o teu nome, os teus olhos tímidos
a tua curva do pescoço
o teu modo doce –
as notícias são iguais a um futebol de letras que muitos
jogam melhor
ali mais para a esquerda, ali mesmo ao centro, à direita, que
ninguém vê
e ninguém compreende que há uma mesa
de perna manca, almofadada, para que não se ouça o som
do euro, do dólar e da libra, onde, por debaixo
se faz silêncio
e se trocam com cuidado moedas e cassetes, discos e
envelopes
com um assentimento dos olhos com a participação das mãos –
guardam segredos numa bolsa de contradições
e oposições, a
antítese do sonho, porque por debaixo da mesa se faz o jogo
um jogo de árbitros de fruta podre e de marcações
um vício, digo, inútil para a alma, mas imenso para o umbigo
–
e é tão cansativo este lamaçal –
mas guardo o jornal, dobro-o todo, arrumo-o na saca
como se levantasse uma mesa, como se dobrasse uma toalha que
parece branca
mas está cheia de nódoas, de um vinho falso, de umas
migalhas de aço
de um riso gasto de espiões de caras quadradas, de testas de
ferro –
guardo todas as notícias na saca plástica, e fecho os olhos
para seguir ao sul, à cor mais azul, até ás casas brancas
caiadas de cal
com terraços árabes para secarem figos para trazerem mel
e penso em ti, no teu rosto e nos teus lábios molhados de
chá egípcio
nos teus pulsos de veias finas e pulseiras de cores
argentinas -
pergunto-me onde está a trança, ao centro ou em que ombro?
suponho que usas o vestido branco e que subiste acima à
varanda.
vês provavelmente os telhados, ao fundo o mar. e é a hora inapropriada da radiação.
mas protejo-te, deixa subir o sangue, crescer a tonalidade
vermelha
afinal é quase verão e os deuses exigem atenção: as tuas pálpebras
o ângulo recto dos joelhos, os pés descalços nos azulejos
sentada na cadeira e sem a mesa, escutando a sesta e o silêncio
próximo –
não te mexas, abre as mãos como quem espera uma carta ou um
poema
espera mais um
segundo
pergunto ao vento se me leva, junto do teu ombro
os lábios –
os lábios –
josé ferreira
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