escrevo-te esta carta para que a guardes
como um papiro enrolado e teimoso, numa cor de cera
e de duplo sentido, de barco e vela acesa
de mar e areia, de cor clara e noite, de sonho e folhas estendidas, numa
mesa.
vou-te contar, começa assim:
está um dia luminoso com raios parados e quentes.
num rádio próximo, as
ondas do éter, a música.
uma Tracy Chapman soa de voz cheia e funda
e por vezes ausente e acústica no solo tarã-rã-rã,
tarã-rã-rã
e sinto-me oscilar em mãos invisíveis
sobre os ombros, os ombros da camisa, azul como o céu morno –
repetem-se as cores, digo-te, é uma revolução por dentro
uma revolta que me nasce nas raízes e sobe bem por dentro
um poder do intangível, uma hipérbole de um coração aflito
um batuque, um batuque de sinais, sem limite, “a bout de
soufle”.
repito-me, e canso-te
–
a tua paciência esgota-se, não sei, digo, não sei , e
preciso dos teus olhos
preciso dos teus olhos para os colocar junto dos meus, tão
simples e tão perfeito
para os saciar de lábios, de mãos de roda, numa volta
e de outra volta. e depois encostados no meu peito, um
conforto tão perfeito
e os braços, os braços e o abraço
os braços, dos dois lados, e um sossego, um sossego
perpendicular
perpendicular ao areal, à linha do mar
e depois o laranja do crepúsculo, um incêndio a subir por
dentro
até que horizonte arda, se vista de cinza e nos ofereça a
lua
a lua branca sem distância e o mar ao fundo –
está um calor de assalto, tão forte que me dá forças
está um calor de dia, é isso que quero dizer, um calor de
Roma, italiano
sobre uma toga branca e pura apenas porque não te encontro
agora, neste momento, voando num pés de sabrinas , soltando os
cabelos
recebendo as carícias anónimas das brisas, as carícias que
também são minhas
porque é lá onde se junta, esta minha espada de versos, a
afastar inimigos.
agora
no sítio em que sigas, eu caminho –
desculpa, não quero ser obsessivo, respira, respira sempre,
como quiseres
venero os teus passos e dispo-me do artifício, é tal o teu
poder, tornas-me um anjo
e um cupido atingido
de seta, a despir-se e a tapar o umbigo –
as mãos que estendo são de muitas linhas e histórias e de
algumas passagens de ventos
tempestades e trovões de alguns outros, eu acredito
e há um respeito em tudo o que me dizes –
desculpa, não é meu costume esta revolta, ser tão despido
mas é dos raios, os raios que apoquentam, que fulminam
que tanto me traçam a tua figura, como depois me recortam o
ar em frente
e abrem um poço escuro, um lugar
cheio de vazio
uma rasteira do tempo, a supressão
do linho –
sim, hoje é um dia luminoso e preciso
dos teus olhos
como faróis, faróis brilhantes de
um navio, e das tuas mãos e dos teus dedos
para lavar as veias mostrar os
aromas das palavras quando se vestem de vermelho
as palavras
que soam do lado de fora e depois
entram nos ouvidos, e fazem eco, ressoam
e aproximam e crescem, de um
tamanho, de um tamanho
que não seguramos o corpo e
subimos o rio
até à nascente
para descer de novo na seda de
pedras que se amaciam
na selva das margens invejosas que
quase não acreditam
nas árvores e nos pássaros que se agitam;
ramos, folhas e asas e um curso de
águas duplas e lisas
um aconchego de infinito –
abraço-te meu anjo, à minha
frente, neste ramo de palavras
onde predominam jasmins e jacintos,
os aromas das glicínias
o vermelho das buganvílias, as
flores de petúnias, múltiplas cores
e as orquídeas, sim, as orquídeas
e uma união, tão perfeita, tão
perfeita dos sentidos –
beijo-te a corda das vértebras, a
coluna, e seguro-me
dás-me um mundo
de ombros nos ombros e de cabelos
estendidos em trança
de um só lado para emoldurar o
rosto, enquadrá-lo melhor, sereno
para que adore a sua inclinação breve,
o seu sorriso de mistério e sem mistério
o seu desejo de amoras
o seu desejo de febre –
mas calo-me. como sempre tenho que
calar as palavras, a sua platina
que me abre e me torna exausto, em
arrepios. calo-me e guardo-as.
para uma próxima carta.
como sempre é tarde e há um
silêncio enorme nas paredes do quarto.
dorme, descansa, dorme e descansa ao mesmo
tempo.
sonha, corre, sonha e corre dentro do sonho por uma aurora
por um campo de margaridas de
pétalas brancas e olhos amarelos
no dia de todos os pólens
e sonha agora, agora –
por onde sonhares, eu caminho,
sonho contigo –
sonho contigo –
dorme, descansa e sonha
agora, agora –
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