segunda-feira, 30 de abril de 2012

a carta que te escrevo ( XII )




escrevo-te esta carta para que a guardes
dentro de um livro, um livro de poesia
daqueles que podem ter um poema, um único poema que nos segure dentro
dentro do seu  mundo, com as nossas letras, dentro das suas janelas.
vou-te contar,  começa assim:

hoje é cedo ainda. é um fim de dia, de um dia que pela segunda vez escrevo
com os ombros pousados na mesa e os olhos dentro de um poema.
escrevo como se os meus cabelos cada um e de maneira diferente
tocassem  teclas de piano, acertadas, para te embalar dentro
dentro da minha cabeça, uma dança de imagens e do pensamento –

há uma pele fora e uma pele dentro
uma cadeira, um colo, um abraço e uma música por todos os cantos do poema
há uma pele ferida com todas as nossa letras, com todos os nossos caminhos
e não podemos julgar os medos ou os dias só porque nasceram e existiram
nem tão pouco julgar os segredos que são segredos e aqueles que um dia se descobrem
e se tornam uma troca de palavras,  compreendidas na mistura dos dedos 
que abrem botões, tirando lentamente as camisas, mostrando sinais
clareando na noite, madrugadas e manhãs  –

falamos sempre de nós com os poemas.
 umas vezes somos brancos  como o cimo das montanhas
uma claridade mais perto do céu
outras como um vento,  uivando, para distrair os outros sem que ninguém nos perceba
outras como mudos sem uma língua que fala,  com fragmentos de frases e palavras
e sem os gestos que percebam
outras brancos como a cal, com receios, como pêndulos baralhados sem ritmos
perdendo todos os tempos e a continuidade do movimento
o movimento que nos embala e nos invade os ouvidos –

mas como sabes que sabes que sinto o mesmo que sinto
sabes que quero ser um sussurro de seda e um sossego zen
como um gongo que tocou forte e deixa escoar o som, lentamente
como um eco de um grito de alegria no cimo de um mundo
um som de uma canção de infância a baixar as pálpebras
como dedos de mãos subitamente tão pequenos
a perderem força e as pálpebras esticadas e redondas –

 quero que te encostes na cadeira como se fosse forrada de penas e com o pólen das flores
uma cadeira de braços de preferência, uma cadeira de embalo com um poema.
deixa cair o braço direito, abre a mão como se dela se soltasse a ansiedade
e deixa que o ombro sinta, sinta  a diferença –
levanta de novo e pousa a mão no braço e agora com a esquerda
repete o movimento –

parece que nada muda mas afinal é como se estivéssemos juntos, frente a frente
como um espelho em que seres mulher e homem não interessa
porque essa é uma diferença que mora do lado de fora
mas não tem o dobro da pele, de dentro e de fora,  que se juntam dentro –

o que te quero dizer é que te quero, e que te quero muito
como naquele poema de Leonard com as duas metades dentro de tudo
para completar os búzios, o mar, as ondas e a espuma nesta noite tão escura –
mas de uma forma sossegada para esperar todos os minutos
que nos tornem como uma muralha, uma muralha mais longa e construída –

o Inverno é frio e molha os pés mas podemos usar o mesmo casaco
e viver três quilómetros de rua debaixo de um guarda chuva
no Outono, tantas árvores e tantas folhas, e tantas flores na estação de março;
aromas que nos abrem e desnudam como magnólias soltas, glícinias e petúnias
a doçura do jasmim,  a lantejoula de flores desenhando os jardins.
e na estação cálida, caliente, a impaciência da roupa, a transpiração
a pele morena e quente a clamar pelas brisas,  em qualquer praia de gente
ou sem gente, desde que as mãos sejam duas no mesmo cálice de tempo
de horizonte e de marés –

todas as estações são boas para adormecer
 desde que a alma pela aragem dos poemas
possa pousar em sossego, é o que mais quero –

estes poemas ao fim da noite como uma mão que enlaça a tua
aconchega-te a face e beija-te as orelhas
e quer que a guardes, a carta, a mão e o poema –

boa noite… beijo-te as orelhas
e o pescoço, e as orelhas e o pescoço
para que adormeças –

encosto-me nos teus cabelos –


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