escrevo-te esta carta para que a guardes
como um pássaro da manhã que escolhe uma janela
como um pássaro que pousa num parapeito, num pedaço de
mármore
e  nele eleva o canto,
uma música de sons que cresce como um soneto.
vou-te contar, começa assim:
a vida é muito complicada, uma frase comum mas de importante
significado
porque durante muito tempo temos que guardar as palavras,
encolhê-las
para que caibam juntas e nunca se fragmentem, nunca se
percam 
nos labirintos da cidade –
é importante guardar todas as letras como um pedaço de pó
iluminado 
ou um pedaço de chuva, um traço de um tracejado muito
delicado;
um molha-tolos, muitos dirão, o que é vulgar, toneladas de
vulgar
de rotinas,  um não
original, mas mesmo assim complicado, complicado
difícil de explicar  -
gosto das tuas calças de ganga, da forma como te aconchegam
o corpo
a cor azul, azul clara , como uma transpiração das nuvens 
para que não se descubra o céu de uma só vez 
e  para que se abram
portas, devagar -
como um primeiro verso,  e um outro verso, como um lego que se junta
pela atracção de letras e algo mais: um olhar, uma química
um espírito por explicar –
reconheço a minha adolescência, a minha febre, esta doença
reconheço, e sei da imprudência e sei dos muitos que erguem
a voz
 e dizem aos quatro
ventos: cala-te, cala-te, pára de falar
 pega numa tesoura de
letras para a lobotomia central
 corta um anel de
cabelo e faz uma magia de fogueiras
não ouças a voz de Iemanjá –
cala-te e cala essa trombeta de areias, as tempestades de estrelas
não olhes o girassol, fecha os olhos, não olhes o mar –
guarda todas as sensações, os dedos empolados, os remos dos
lábios. 
não faças mais versos, não inventes métricas e fala  de coisas concretas
como as curvas de Gauss, um sistema euclidiano, a curva de
um meteorito 
em trajectórias de deserto –
não há só uma direcção, a direcção obrigatória, do sinal
vermelho,  das negritudes do Restelo
das temeridades, das auto-estradas iguais, dos cadeados
ditos normais –
preocupa-me o teu sono,sim, o teu sono, o teu sossego, e
agora, nada mais –
neste momento escrevo-te 
como se fosses a única mulher na terra
uma privacidade boa, uma pérola hexagonal e multifacetada
a única que deve ser observada, com a calma e a carícia do
olhar
um puro néctar  de
orvalho, uma gota enrolada e frágil –
hoje carreguei um nardo, uma forma diferente de dizer aroma
quando menos esperava, surgiu alguém com pétalas brancas
ramos verdes e uma pinta vermelha, tratava-se apenas de um
adereço
um adereço de alguém
um pequeno espaço de jasmim em mãos anónimas, de cheiro doce
uma cena súbita e imprecisa que exigiu a passagem da flor
e um  aroma subindo,
aflorando as narinas  –
olhei para o lado e fixei os olhos castanhos numa parede
branca 
irracional  e parada
no meio da  cidade –
de um único filme, de uma única cena, sistemática
em câmara lenta, de repente, no meio da cidade, na parede
branca
para que possa de novo rever-te, lentamente
e com saudade –
os teus olhos de lua, os teus olhos de mar –
o aroma era forte como redes, uma prisão de algas, e todos
os que me rodeavam
falavam de outras coisas, batiam palmas de algo que acontecia,
e era normal
algo de que perdia a consciência e deixava desaparecer em  forma queda
como uma migalha  que
não se pode evitar –
há um exercício que faço, que faço muito,  sobrevoar
 apanhar nos braços o
teu corpo, apanhar no rosto os teus dedos
apanhar nos lábios os teus lábios, doces –
e o teu inclinar da cabeça
quando te aconchegas numa concha original, tecida  de sonhos
tecida de músicas, tecida de asas de borboletas que são
coloridas e sabem voar –
asas, asas, se tivermos asas podemos voar –
desculpa esta carta que 
escrevo, desculpa-me muito.  
o teu sono e é tarde e elevo a voz sem o sussurro habitual:
um sussurro de swing, um sussurro de jazz
desculpa-me o entusiasmo, o subir muito, sabes, eu tento
mas é cada vez mais forte este tambor de pele 
esta  continuidade de
bater, bater muito, um batimento contínuo.
há este estado de um novo elemento na tabela química
chamo-lhe insígnia, chamo-lhe espírito de primavera 
chamo-lhe espelho de novos lugares no multiplicar da alma
uma perda de densidade, a magnitude da leveza
a impossibilidade de segurar 
de o fazer parar, de o conseguir pousar
e ele a bater muito e a querer  voar –
desculpa, eu sossego para que sossegues, apelo e chamo todas
as brisas
as brisas da companhia, um afecto sobre a linha dos olhos
a linha de uma mão estendida e uma face direita e suave 
e as brisas, as brisas  que se colocam na frente dos nossos sonhos
sem complexidades como uma maresia, a maresia que é sempre
única
e existe –
esta carta que te escrevo é a décima, uma dezena
pensei toda a tarde neste número notável -
quero que sossegues, abranda um pouco, se estivesse ao teu lado
gostava que sem pressas te deitasses num sofá grande
com as calças de ganga, de azul claro e uma camisa branca
ligeiramente descaída num botão que se abre
para que te embale um pouco e te afague com uma manta
escocesa
de quadrados, bem apertada nos ombros, para esconder o frio e as sombras.
sentar-me-ia no chão com a metade da felicidade e uma página
em branco
para recomeçar o poema, para recomeçar o canto
nesta carta que te escrevo –
é talvez a mais longa, a décima, a da dezena
e desejo uma lenta queda de pálpebras, uma lenta queda
de uma pena branca.
quero que adormeças, que adormeças e sossegues
para te tirar os sapatos e te deixar dormir de meias
meias de algodão a segurar os dedos 
enquanto os versos preenchem folhas completas
espalhadas pelo chão, um tapete de poemas  –
hoje, um só beijo na veia mais carregada
não te mexas, mantém essa manta bem apertada
respiras como o meu gato quando se aninha 
e esconde as garras em tufos macios
não te mexas
chamo os anjos, chamo os anjos …
para que aconteça o milagre
não te mexas -
não te mexas -
 

 
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