terça-feira, 24 de abril de 2012

a carta que te escrevo ( VIII )




escrevo-te esta carta para que a guardes
dentro de um cofre de paredes invisíveis
para que mais ninguém a saiba viva e sempre perto de ti
para que seja como uma alma feminina, sensível
para que a possas tocar sem receio e lembrar.
vou-te contar, começa assim:

hoje li palavras de uma peça antiga, de romantismo em desuso
porque manda o mundo que sejamos duros como peças de computador
e micros nos sentimentos,  para olharmos o amor como volátil e solúvel
como um ar de montanha, um nevoeiro ou um tropel imediato
que devemos aceitar como passageiro, um intervalo de nuvens
e depois aceitar de forma fácil como um papel amarrotado
na pressa telúrica e animal –

porque não há intensidades  e forças que nos cresçam nos pés
e que durem para sempre?
porque não há olhos siderados e braços sempre encostados
porque não se acredita nas possibilidades da fogueira
de um interminável fogo, nos  olhos transparentes como água
e que durem para sempre?
porque não se acredita no amor e na proximidade das cartas?
porque não há sempre as noites sossegadas num círculo único
como as libélulas que desenham corações inteiros –

não que seja o nosso caso, o nosso pensar. falámos da magnólia
da íris, dos aromas inconfessáveis de jasmins e jacintos d’água
e são coisas de cristal, coisas de coisas que não se podem partir
coisas  que não se esquecem mais –

queria adormecer por cima do teu ombro
com os braços à roda do teu corpo, da coluna das costas
como se fôssemos uma única tábua
à deriva e sem medo, na imensidão do mar –

haveriam de chegar manhãs com a curiosidade das gaivotas
e noites forradas de estrelas
a lua seria uma página escrita,  uma lista amovível e interminável
das palavras que diríamos, iluminadas, insaciáveis –

sempre que me transformo em tinta fluida
corro como um rio de letras sobre a folha branca, passam as horas,  todas as horas
e poderia crescer-me a barba antes de que me canse e encolha os dedos
e pouse a caneta como um barco vazio e esgotado, adornado e preso
na âncora pesada, perto da praia, perto do cais, no ninho das tuas asas –

quando te escrevo é como se suspendesse o tempo e nada mais á volta
é construir-te em todas as tuas formas;  a curva do pescoço,
o sorriso no movimento dos olhos,
as mão sobre o meu rosto num triângulo perigoso
que me leve os lábios, que me leve os lábios
 infiltrados no teu gosto –

quando te escrevo construo-te perfeitamente e sofro
e caiem-me lágrimas vermelhas, um crepúsculo medonho
na noite que se estende
antes do sono, antes do sonho  –

são altas horas e ouço  músicas de jazz, um vício de swing
uma dança de corpos –
passam filmes em grandes rodas, películas Kodak e Eastman, câmaras claras –

 desculpa-me.  inflama-se a  noite. abraço-te na sombra
e embalo-te nos ombros como se houvesse ondas
e sinto o teu cheiro, a pele transpira um pouco, e depois cala-se.
a tua respiração avança como uma neblina.
sinto o teu sossego, sinto que estás tranquila.
as ondas tornam-se miúdas e transformam-se num espelho parado
uma estrada branca. a tua boca está fechada e a minha caminha
numa voz interminável,  como o ar que respiras –

escrevo-te esta carta sem data e sem número
para que não termine, para que sossegue todos os teus segundos
para que seja uma cítara de um romantismo antigo
para que te diga que não és de ninguém e és única e que te admiro
para que te diga que podes ser lava de vulcão ou um tecido de linho
que podes ser humana, fada, sereia ou ninfa
em todos os meus poemas, porque existes e te aceito de todas as formas
na forma como me transformas numa marionete de belos sentidos
e porque o teu rosto é bonito e sou escravo
escravo dos teus olhos, escravo do teu sorriso –

sei que respiras, uma e duas, uma e duas e três vezes
com os pulmões a crescerem e a pousarem em lugares de desejo
e transpiro um pouco, agora mesmo que estás longe, adormecida –

desejo-te uma música  de jazz, uma big band e uma voz de Diana.
um Stan Getz numa música de samba, swing and low
e que sempre que o ruído aconteça coloques as duas mãos em concha
por debaixo das faces na pele do rosto
para que se liberte uma pérola de sono, a que te envio
nesta carta de palavras mansas e nesta carta de palavras de fogo
nesta carta que te escrevo
para que de novo sossegues, para que de novo adormeças -

recebe a infinidade da minha carícia, de mão inteira, de dedos grandes
adormeço com os olhos nas estrelas -

beijo-te muito -

4 comentários:

Vanessa Souza disse...

Palavras que afagam.

M. disse...

José

leio as suas cartas hoje dia da aclamada liberdade sob o efeito do meandro, não da alma, mas o tinto, com quase todas as castas de um vinho do Porto. E nesse meandro de vale meão e nesse poema eu vejo a beleza. Não ébria, mas sóbria de um poema que enebria.

Obrigada por complementar o calor de um brinde com a cor rubra de um poema

e viva a liberdade (mesmo que apenas pelos cravos tão belos e sem os esponhos das rosas)

M. disse...

queria eu dizer espinhos e não esponhos...que se esponham os espinhos
(não é culpa do meandro, mas da velocidade dos dedos nas teclas)

Gilda disse...

Olá Abrunhosa. Eu sou a gilda (FEUP; dos almoços anuais em casa da Céu e do melo) (apresento-me, pois não sei lidar mto bem c/ estas coisas dos bloggues!). Conheci este bloggue, através da Clara oliveira, minha colega do colectivo de leitores de poesia a q pertenço. Bom, dadas as explicações, dou-te os parabéns pelo trabalho e pela beleza deste bloggue. Revisitá-lo enche-nos a alma! gostei muito desta carta.
Abç, gilda