segunda-feira, 2 de maio de 2011

a casa do telhado


Gustave Caillebotte

há um quadro de perguntas que se desenha na casa do telhado:
será ou não habitada para além de um ar de pó
que se inscreve na seta de luz e atinge o soalho,
as tábuas longas de pinho largo
cor de mel, de uma antiga cera carnaúba,
a mais pura?

quando se abre a porta gigante da sala da lareira
as molduras de gesso falam de um outro modo;
uma voz branca e recortada, uma voz de quadrados,
rectângulos ou folhas minuciosas,
dentro de um grande eco,
onde não se apagaram as luzes nem se faz a sombra -

por vezes, as janelas erguem-se e as portas abrem-se
na incertitude alta de certos dias, a qual invade a liberdade do jardim,
espanta os pardais, e levanta um cântico de ave escondido na folhagem.

na casa do telhado, por uma vez, algo aconteceu de inexplicável:
pela tarde caiu a trovoada; as portas e as janelas abertas -
abriu de novo o sol; as portas e as janelas abertas -
chegou manso um crepúsculo morno de fim de tarde; as portas e as janelas abertas -
avançou a noite no hábito do silêncio; as portas e as janelas abertas -
as portas e as janelas abertas -
passou um guarda nocturno de fato cinzento,
de boné por baixo do braço, de cabelo pardo
em direcção ao teatro, apressado, quatro e dezassete.
fixou as janelas imóveis, as portas quietas
e o vento adormecido;
nenhum ruído nas dobradiças sem óleo,
nenhum ruído.
seguiu intrigado -

um quadro de perguntas na casa do telhado -

pelas cinco, naquele mesmo dia, inexplicável
passou o homem branco da padaria em direcção ao mercado.
trazia um resto de jornal Destak, e soletrava, alto.
colou os olhos no candeeiro do tecto da sala,
pensou se seria ou não habitada
e seguiu no seu passo, repetindo de novo as frases,
do Destak -

o jornal não falava da casa do telhado, nem do horário, inexplicável.
às sete em ponto, um vestido branco cobria a forma de uma porta que fechava;
um vestido de cauda arrastava os súbitos ruídos, certos, exactos,
e a casa adquiria o estado habitual, a fronteiras fechada.

uma única vez, inexplicável -
um quadro de perguntas habita a casa do telhado,
entre o facto real, o ar difuso, enublado,
e a possibilidade -

José Ferreira 2 Maio 2011

1 comentário:

Elza disse...

Adorei 'o quadro de perguntas da casa do telhado'! Com seus mistérios insondáveis, quase não dava para acreditar que era no tempo do Destak, mas vendo melhor pode ser assim, na 'incertitude alta de certos dias'. Beijinho grande!