sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

a força do seu gesto


Imagem retirada da internet


o espaço de uma sala, lugar físico de um encontro
enquanto ao lado o burburinho que espantava os pássaros
habitantes sedentários de fim de tarde na camélia florida
de cor vermelha, abrindo os ramos de sentidos nas folhagens
braços um pouco longínquos, de um tronco não muito largo, inclinado
lembrando aromas, intensos, num corpo sem espinhos.
a sala como pretexto onde a dúvida incidia
qual raio beijando as curvas da cortina e caindo na pele de uma Bíblia
antiga, e um livro de Céline.
- Nunca li Céline - ele disse, quebrando o silêncio explícito de ruídos íntimos
- Céline é diferente- ela disse, no suporte seguro de um ponto invisível
um argumento de janela fechada, sobre o assunto, sobre as folhas do livro
não era esse o motivo de dois corpos afastados na sala junto ao burburinho
do mesmo modo que o baloiço, no quadro a óleo, suspenso no movimento
no centro pérola da parede, acetinada; tonalidade escolhida numa loja da cidade.
não. estava cansada, sentia a pressão da mudança. não, não seria Céline.
ele sentou-se no banco preto do piano. deslizou os dedos de modo inconsciente
sobre algum pó no verniz, negro e brilhante, um tampo como uma cama
de cordas adormecidas, invibrantes, mudas, de um som impossível.
- Sabes - e os olhos não se cruzaram, os dela na nuca dele, os dele no gesto
no acto deslizante, nos dedos viajantes na superfície lisa de uma cor escura
apercebendo o fogo, a intensidade de uma fogueira, crepitando na distância
um eco dentro da cabeça, juntando palavras, fazendo frases, uma outra sala
um outro quadro, os mesmos actores num palco de cortinas fechadas
tentando adivinhar o SE e SE, qual a reacção, como seria
mas, um atropelo, um engarrafamento de silêncio. nada.
ela, no tecido Laura Ashley, rosado, um sofá luminoso no meio da sala
cruzando e descruzando, ajeitando a imperceptível ruga de um vestido
trocando os pés, rodeando a orla de um tapete, à vez, um jogo
no intervalo de uma fala com falta de consistência, quando a expectativa
a expectativa alta como os montes de Himalaia, as águas de Niagara
uma melodia viva de Mozart e menos Schoenberg, fragmentos entrecortados.
- Sabes - de uma jarra de cristal, Atlantis, oferecida pela tia, caiu uma pétala
adormecida, uma seda clara de magnólia sobre a mesa onde a Bíblia, Céline
um sinal de Natureza oscilando no côncavo, ou convexo, conforme a óptica
de ar ou mesa. Uma pétala, interferindo, e a mão que recolheu a densidade
inusual nas outras flores, mas ao mesmo tempo, sem o parecer, frágil, indefesa
sem a condição de concha sobre estames, os sinais de próspero e possível.
os dedos acariciaram a concha ávida num desejo de feijoeiro mágico
um, dois, três, crescendo, crescendo, como um manto grande, grande.
os dedos dela acariciaram a concha ávida. o olhar numa outra direcção
a janela, um quadriculado sobre a árvore. levantou-se com pressa.
abriu a janela e pousou a pétala no parapeito verde, recentemente pintado
com as duas mãos, como uma mãe, um berço, um recém-nascido.
um ar frio invadiu a sala, o argumento, a intensidade do silêncio.
- Sabes - permanecia afundado num poço de fim indefinido, um lugar sem luz.
ela abriu um sorriso, iniciou um pequeno trajecto, delicado no passo, lentamente
sentou-se no colo dele, não deixou que o abraço se fechasse
um filme antigo,a preto e branco. quando os olhos se cruzaram, tomou-lhe a mão
que deslizava sem ordem, trémula e indecisa e escreveu uma palavra na superfície
visível, no pouco pó, no muito brilho do silêncio e das cordas escondidas do piano.
nas linhas presas de uma testa pálida pousou o sabor vermelho dos lábios
- Eu sei, não é fácil - saiu dizendo - não te esqueças de fechar a janela
e sorria sabendo da força do seu gesto -

José Ferreira 21 Jan 2011

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