domingo, 14 de novembro de 2010
Difícil poema de amor
Henry Rousseau 1897
Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa
do juiz supremo dos amantes. Para que os juízes
me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito feito de marés ambulantes
de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor
são ruas estreitíssimas velocíssimas que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.
Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste
número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste
maléfico
como um pássaro sem bico.
Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da manhã de hoje.
Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-
me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não
te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os
olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?
Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.
Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a
cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.
Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.
E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos
benignos que faremos?
Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes.
Conheces-me. Não me tens amor
Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me
afundar.
Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!
Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado
com mais visco de amor cópula mortal.
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro
ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros
coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá
outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo
eu. Existirão tais palavras?
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico
calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer
assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se
fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em
volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes:
separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam
pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-
-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.
Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao
mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam
este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão
por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclu-
-sos beijos nos dentes.
A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e
de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos
sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país
e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e
morremos.
Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me ador-
-mecias devagar.
Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite
pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um
animal estrangulado acordei-te.
Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter
medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras
atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me
impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.
Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Luiza Neto Jorge "Poesia" Assírio & Alvim, Lisboa, 2ª edição, 2001
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