Continuo a pensar que não sei se é mau ou bom conhecermo-nos tão pouco. A verdade é que não sabemos nada um do outro. Por um lado é agradável porque assim não se rompe o mistério e continuamos a ser aqueles dois desconhecidos que se encontraram em Vila Praia de Âncora, no verão em que aprendemos que nada é mais poético do que o segredo de um olhar cúmplice e silencioso; por outro lado não podemos ignorar o que os dois de antemão sabemos. Se nos tivéssemos conhecido melhor talvez eu não fosse aquela menina tímida e displicentemente ingénua, nem tu o cavalheiro perfeito e encantador que eu vi pela primeira vez numa praia atlântica. Quem sabe se não será melhor continuar tudo assim, na distância, ainda que em dias melancólicos pareça que me sinto a calcar o mesmo areal límpido e fresco, como se a praia da pequena vila corresse pelo mundo fora e estendesse as pedrinhas mais brilhantes (aquelas que procuravas com as mãos quando da tua boca não saiam palavras), até a porta de tua casa.
Não sei se haverá um dia de todos os que teremos no qual nos possamos encontrar novamente. Também aqui é melhor as coisas ficarem como estão. Gosto de saber que este é o maior sonho da minha vida, ver o teu rosto, abraçar-te, saber de ti. Gosto de imaginar que este sonho condiz comigo por ser simples e grande, por se bastar a si mesmo e ter como sonho um caminho a percorrer.
Não te podia dizer nunca que és o homem da minha vida. Sou avessa a esse tipo de conclusões, como se quando um coração despertasse o fechassem logo, para sempre, numa caixa de sapatos. Mas tenho a lembrança dos contos de fadas que outrora me sossegavam, da menina que fui, dos passeios de pés descalços, dos presentes que abri e guardei, do que era o mar até um dia e noutro dia passar a ser outra coisa. Tenho a memória. E nela o medo de ter guardado na caixa de sapatos sem nunca abrir, o que trouxeste no dia que descobri que no fundo do mar não vivem só peixes e plâncton. E se da caixa de sapatos já nada teu pode sair, sou eu que tenho que entrar e fechar-me nela para resgatar os passos na praia, as ondas do mar, as pedras salgadas que distraidamente escolhias como uma criança solene. O teu amigo dizia que era um género de cerimónia de chá e que tu estavas convencido que arrancavas ervas invisíveis coladas às pedras. Lembras-te? E ríamos todos quando os rapazes encenavam a espera do auge da maré alta, momento no qual fervia o reflexo do sol no oceano, hora fidedigna para preparar o chá e contemplar o entardecer acompanhado de vagas promessas.
Hoje, um sentimento estranho advém dentro da caixa, e eu, descalça, penso nos teus pés a massajar a areia nua da praia de Âncora, como se soubesses que algo de incompreensível e natural em mim estivesse enterrado no campo das areias finas. E o teu antigo silêncio a recolher pequeníssimas pedras fizesse parte de um projecto de uma magnífica sepultura para o amor, que ainda hoje prossegues a edificar em minha honra, na altura do dia que o sol vai alto e desconhece as sombras. Por isso, mesmo depois de arrumar habilmente a caixa de sapatos, concedo a um comportamento não habitual em mim - confirmo levemente com a nuca quando ouço a cigana que me diz que és o homem dos meus sonhos mesmo conhecendo-te tão pouco. Então entendo o poeta que falou de almas insepultas. Entendo a força com que o mar recolhe em cada alvorada o monumento que me leva a pensar em ti como se de um mandamento íntimo se tratasse.
[A. Roma in "cartas de um jovem amoroso"]
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