segunda-feira, 31 de maio de 2010

caem berlindes pela calçada


fotografia de Joana Campos retirada do site "Olhares"


caem berlindes pela calçada.

nada se sente de natural. não passam carros.
um silêncio de avestruz em intervalos de ruído.
de berlindes. multiplicados de vários sons.
sons de vidro. vidros. transparentes. de berlindes.

caem berlindes pela calçada.

no céu um motor em chamas. chamas. amarelas.
a fuselagem de cartão separa-se. um ovo descosido.
passageiros revisitam interiores humanos. histórias.
acertam as dízimas de costas direitas.
alguns falam mais alto.
as asas partem como capas de açúcar de jesuítas.
em mil bocados. há rezas de bíblia sagrada.

caem berlindes pela calçada.

o comboio partiu às dezanove de Berlim
a escarpa cedeu de muitas águas. caíram pedras
a leste da linha federal.
a garganta metálica dos carris esfuma o trinco
fecha as rodas. rotações paradas. os murmúrios.
passageiros escutam, esperam, murmuram
a ausência de um estrondo. alguns falam mais alto.
não rebenta o balão de oxigénio. os pulmões
cheios de ar que estanca. pára a pesada lata.
um susto. apenas um susto. aguarda-se.
aguarda-se de costas apertadas nos bancos.
bancos de napa. bancos verdes de napa.
faz-se escuro. o gerador acende luzes
e é noite. noite escura. depois a madrugada.

caem berlindes pela calçada.

não há só desertos no Iraque.
poços de petróleo insonorizados.
em tempos houve bunkers como retábulos
retábulos de uma ira. uma ira atómica.
o bunker dos fracassos cala a voz das ruinas.
a voz dos antepassados. voz de mortos.
à voz dos mortos juntam-se ainda mais mortos
de mercados , escolas, hospícios – os inocentes
de mãos quedas e corpos ainda moles
nos artifícios do fogo. fogo que sai de dentro.
na glória do espírito. do sacrifício. do sacrifício
santo e inútil. injusto e energúmeno.
um golfo de golfadas. golfadas de rios. intifada.

caem berlindes pela calçada.

não é natural o estado branco.
no interior próximo de uma casa de vidros duplos
estabelece-se um código de tempo parado.
o descanso. batem as portas e as portadas
que encerram a luz por dentro. folheia-se livros.
algumas páginas. apenas. apenas algumas páginas.
não se descobre a invasão branca. de fumo.
de fumo no silêncio de pratas e cristais reluzentes.
o estado branco envolve. retira a cor das casas.
expande e invade. sem carros como um corpo grande.
grande de branco. sem nada. para além dos ruídos.
ruídos de vidro. berlindes. que caem. caem.
longe. cada vez mais longe. em intervalos. pela calçada.
um ruído cego. mais longe. mais longe.
a rua inclinada –

caem berlindes pela calçada.

pecados espalham-se de muitas células.
a humanidade perde-se até ao mar.
há crianças de rosto pequeno no tamanho grande
de olhos. olhos que falam. imploram. a fome.
a indiferente insanidade de tantos. de tantos.
muitos discursos de abjectos oráculos.
o egoísmo auto-abençoado. reza-se por milagres.
o incómodo de ninguém acreditar. histórias.
mente-se demais. morre-se demais. tanto.
a atmosfera branca cresce numa névoa de inquérito.
multiplica-se. multiplica-se. um espectáculo de fantasmas.
cresce na imunidade de glóbulos. como um exército
um exército que trata. que quer tratar. invade.
é noite. espalham-se berlindes. por todo o lado.
o sono é um sonho acordado. a lua está acordada.
funde-se na nuvem branca. o globo engloba.
é preciso obstruir a indignidade –

caem berlindes pela calçada -

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