terça-feira, 10 de novembro de 2009

Nada nem uma metáfora




Inspira, inspira, apenas o gato
Sossegado na corda da cauda
Que alisa o tecido de um e outro lado
da almofada.

Nada nem uma metáfora.

Os dedos aprumados na caneta
De superfície lisa, permanente
Tinta de uma “Parker” 75
Prenda de outros anos;
Despedida do Alexandre
Entrada na Universidade.

Mas nada, a folha em branco.

E agora depois de tanto tempo
Nem que queira, a tinta seca;
Os batimentos de cadência
O ritmo de pontos brancos
Que se iluminam de novo
Na cor preta
E não era assim costume –
Azul a cor
Os dias, a força, o presente sorriso
E um livro irónico e supremo
De um “Conde Sandwich”, aceso
Na invenção do piquenique;
O pão de forma, o ovo fatiado
Queijo, presunto, o tomate de salada.

E nada nem uma única palavra.

A folha em branco picotada
De bico seco e o tormento
De nem uma, uma única
Qualquer ideia. Nada.

De súbito olho o gato
Que estende a pata e solta as garras –
Penso logo, claro - a selva.
E abre a boca, uma língua de víbora
Dentes sinuosos, os olhos vedados
Claro, claro que vejo – as feras.

Agarro os olhos no cimo da mesa
Procuro de novo o tricot da caneta
E eis que alguém chega, abre a porta
Salta o gato, eriça-se a cauda
Cai a almofada, sopra o vento
Esconde-se a folha
E nada, desgraça.

Alguém chama –

3 comentários:

Joana Espain disse...

O que gostei mais foi o jogo honesto de intensidades. Quando não se estava a passar nada não estava mesmo (não era um disfarce) mas quando uma imagem se soltou as palavras entram em colisão e o pico de intensidade apareceu. As palavras escolhidas adequam-se à intensidade que querem transmitir. Gostei muito disso.

omarpareceazeite disse...

Gosto das imagens que me nascem ao ler as suas palavras. E que, desta vez, entendo. Gosto em particular do final inesperado e inspirado de desinspiração. Bj Clara

Ana Luísa Amaral disse...

"E não era assim costume –". Excelente, este verso, José. Desculpe escolher um, não pense que o faço em detrimento do poema, mas tinha que dizer isto, porque achei o verso muito bom.

Muito boa esta ideia:

"De súbito olho o gato
Que estende a pata e solta as garras –
Penso logo, claro - a selva.
E abre a boca, uma língua de víbora
Dentes sinuosos, os olhos vedados
Claro, claro que vejo – as feras."

Acho que podia estar mais concentrada. Por exemplo:

"Olho o gato
Estende a pata, solta as garras –
Penso, claro - a selva.
Abre a boca, uma língua de víbora
E vejo, claro – as feras."