sexta-feira, 3 de outubro de 2008

COMO DESABITADO, O CORAÇÃO

Podem acontecer milagres. Podem
acontecer, e então a música decerto estará lá,
as palavras surgirão então, o sol, o girassol, a luz
que gira em torno de eixo feito de outra luz.
Poderia ser deus, ou paz.
Sentir. E de repente o mundo a acontecer,
o milagre do mundo a acontecer –
Milagres

Lázaro em vestes brancas,
ausente o pó do quarto onde morara, entretecido
a morte e cheiros de planeta envelhecido.
A estrela nova nascendo dos seus pés.
Eis-me, em milagre e mudo.

Lázaro, a sua voz
em sinfonia muda

Ou a violência dentro do coração,
vibrando dentro do coração, ventrículo desfeito
por esta certeza: surgirão as palavras a seguir,
tão lisas e potentes como a música.
Milagres

Podem acontecer.
Serão como a beleza das pirâmides, a
perfeição: onde pequeno seixo atravessado em falha?
Onde folha finíssima por entre as pedras, as siamesas pedras,
resistentes ao vento e ao deserto, a sua forma, a esplêndida,
a forma mais capaz de resolver enigmas?
Nessa folha finíssima, ou na pedra:
o mais puro milagre

Podem acontecer: junto ao deserto do gesto desumano,
o chicote, a tortura, o revólver bramando no vazio,
a mão que se detém, a boca que não grita,
Lázaro, a sua voz. Igual a música
Eis-nos, e mudos

O conhecer mais puro. O ar que traz os sons,
o tempo a transportar a luz. As estrelas já mortas,
de onde nascemos, a sua luz ainda. Aqui, junto de nós.
Habitar sem saber a mecânica quântica, igual
a habitação de coração.
O pensamento mais iluminado.
Saber da energia, o mais puro conceito.
Como Deus

Milagres. Podem ainda assim
acontecer ao longo do deserto, das fronteiras
erguidas, quase tocando o céu, como pirâmides.
De Rodes, o colosso dividindo, mas aberto aos navios,
o sândalo, a canela, especiarias, mais de mil cheiros,
saltos de gigante, pirateado o coração e o sol.
E ao seu lado, a voz humana:
cal viva e uma paisagem de cacto e maravilhas.
Alguns

milagres.
Junto à vida amputada, à clave, à carne rota,
ao eminente apodrecer das cores:
capazes de fazer tombar ruídos longos,
e ficar só um timbre, mas mais que uma miragem,
um timbre, som de diapasão vibrando pelo tempo,
ou festa de Babel.
A estrela que morrera, a sua luz cruzando
o velho éter, já não éter, mas tempo

Anoitece, e está vermelho o sol ao lado das pirâmides.
Há-de ser isto o eixo de outra luz,
amigos a saudar-se, devagar,
ao lado do silêncio, hão-de surgir.
A eclosão de impérios. Cheiro o cheiro a marfim,
de sílabas tão brancas

Lázaro fala, pela primeira vez.
rouco de voz, primeiro, depois a sua voz:
Eis-me em milagre, mundo!

E o reconcerto abate-se na luz,
e um dedo basta para o reconforto. Um dedo.
As suas veias. Fio de cabelo ou pena de pavão
tornam-se sons, leve ponto de açúcar, se o vento de galáxia
os amacia. Podem então,
em longo desconserto

E encostada à música, essa palavra nova nascerá:
rota dos olhos que não viram nada,
mas com peixes ao fundo, multiformes,
a voz sem palco e tudo a acontecer.
Podem então, alguns deles então, acontecer,
a derradeira vez como
primeira vez –


Ana Luísa Amaral (inédito)

6 comentários:

Nuno Brito disse...

Gostei muito deste poema, seria interessante que ele fosse musicado, pois já tem uma músicalidade e ritmo bastante intenso. as imagens que são passadas são igualmente muito vivas e nítidas.

liliana disse...

Milagres acontecem como este poema cheio de cor, energia e vida em eclosão e implosão.
O estranho, paradoxal e enternecedor milagre cru da vida

josé ferreira disse...

Quem sabe,sabe! Comecei a ler este poema verso a verso, desfrutando de um conjunto que noutro se transformava, subia os versos na estrada do ecrã e ainda sem suspeitar admirava a mestria e a densidade destas "sílabas tão brancas", transparentes.
Quando por fim se desvendou o mistério recebemos esta dádiva sentida de um inédito.
Fica o desejo do poema na voz da autora, em primeira mão desde a primeira linha...
Partilho da opinião do Nuno junte-se a música que a melodia já lá está.

Maria do Céu Melro disse...

Pode acontecer Poesia
Quando o sol espreita as sílabas
Pode acontecer Poesia
Quando as estrelas tocam a sinfonia
Pode acontecer Poesia
Quando a lua uiva o nascimento
Pode acontecer Poesia
Quando a água sente o ritmo
Respiratório
De palavras em movimento
Mas acontecem poéticos milagres
Quando a música sai
Do coração
Palavras Encantadas.

Maria do Céu Melro

omarpareceazeite disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
A desalinhada disse...

E o milagre aconteceu!
Mais uma vez, a Poesia explodiu, cintilante e musical, neste poema!
Mas, só um coração "habitado" por um imenso Talento e uma grande ternura, nos brindaria com a publicação deste lindíssimo poema inédito, no nosso blog! Muito obrigada!
Maria Celeste Carvalho