Fotografia Rodney Smith
naquele dia houve um diálogo, lembras-te? com as margens e
com o rio:
sempre me avisaste do perigo dos caminhos líquidos
e sempre te perguntei: a solidez existe?
essa pergunta é difícil - disseste
cruzaste a perna, e imergiste numa auréola egoísta
um pensamento não visível pelo som e pela escrita
um silêncio incómodo. a pergunta caiu para dentro do rio.
lembro-me, mas não se vê no preto e branco da fotografia – digo
a fotografia apenas permite a fronteira rígida de captar
instantes
e gravar indícios, para que ressuscitem
se forem válidos e significativos –
sabes, a memória estala o verniz, cria traços finos, antique.
constrói os diálogos perdidos com as sensibilidades aflitas.
e nunca são autênticos, os diálogos e os espaços, as torres
e o rio.
o inconsciente faz
estalar o conflito: cada um constrói em si
as visitas da Lua, os meses e os anos, nesse fluir cíclico –
quando surgiu a fotografia não houve resposta
e sendo assim a pergunta persiste:
a solidez existe?
não me lembro da pergunta. não sei se a solidez existe,
nunca lhe descobri a matéria
nem a ideia que a domina. não a sinto e não a sentes e sendo
assim é difícil – dizes
talvez a única solidez que a filosofia admite seja a
permanência dos mitos
o eterno retorno de uma ilusão, como a memória que se revisita.
mas não é resposta.
uma divagação apenas – digo
e voltamos de novo à incerteza e aos caminhos líquidos
ao elogio das razões sensíveis –
provavelmente a solidez não existe e o mundo é líquido.
não é segura a longitude das torres quando as nuvens são
planas:
um teto branco sem azul na cor dos horizontes –
talvez exista uma ponte imaginária entre os teus pés e o céu
entre os meus pés e o céu. uma ponte permanente em movimento
contínuo.
uma ponte móvel de margem fixa
que em ti se constrói e em ti termina –
que em mim se constrói e em mim termina –
mas não é resposta, é apenas uma ponte de partida –
josé ferreira